sexta-feira, 21 de maio de 2010

Necessidade de Máscaras



Eu não sei dizer desde quando vem a tradição do uso de máscaras entre os povos nem as circunstâncias  que originou tal prática. O que sei dizer é que as máscaras têm exercido, ultimamente, certa magia sobre meu espírito, sensações estranhas, um misto de repulsa e familiaridade. Repulsa no sentido de que elas me metem medo, um medo exacerbado pela frequência em meus sonhos. Familiaridade porque, ao mesmo tempo que metem medo, parecem ser parte integrante de mim, um espectro enraizado nas entranhas da alma. Portanto, quando em meus sonhos repudio as máscaras, é como se estivesse esboçando um repúdio a mim mesmo, e talvez essa obsessão seja uma impressão marcada pela percepção recente de que as máscaras nunca foram tão usadas como em nossos dias, tornaram-se imprescindíveis, meio de sobrevivência em nossa sociedade.

Várias civilizações, desde tempos remotos, fizeram uso das máscaras, cada uma com o significado que melhor lhe convinha. Na Grécia, eram usadas nos festivais e teatros, sendo ali o início de seu uso para fins artísticos. Em países africanos e asiáticos, artesãos as produziam para o uso em cerimônias religiosas. Também no antigo Egito eram frequentemente usadas, tanto nos cultos como nas múmias que eram enterradas com máscaras adornadas de pedras preciosas. Esquimós no Alasca, nativos americanos do sudoeste dos EUA e tribos primitivas do Brasil também usavam cobertura facial pelos mais diversos motivos.

Desconfio que a prática de cobrir o rosto ultrapasse as barreiras do tempo e lugares e seja tão antiga quanto a origem da espécie humana. Desconfio que tenha mais a ver com uma necessidade intrínseca da espécie do que com produção artística e cultural. Estou dizendo que deve ter conotação mais profunda do que o significado atribuído pelo uso convencional. Pensando em termos psicanalíticos, acredito tratar-se de pulsões cuja origem esconde-se nas entranhas do inconsciente e, disfarçadamente, se manifesta na cultura. Estou partindo do pressuposto de que, desde que o mundo é mundo, todas as pessoas têm a necessidade de cobrir a cara o tempo todo e que, portanto, a tradição de usar máscaras desde tempos remotos consiste apenas numa representação concreta dessa necessidade intrínseca da alma humana. Destarte, as máscaras feitas de diversos materiais eram apenas sombra de uma realidade feia e vergonhosa, escondida a sete chaves e escondem um rosto mais significativo, de conotação mais ampla, representante do caráter.

Existem a máscara simples e a coletiva. A primeira serve para desfaçar o indivíduo; a segunda, para disfarçar o grupo. Entre os judeus, havia um grupo de religiosos, os fariseus, que vivia constantemente mascarado. Eles escondiam seu verdadeiro rosto atrás de um disfarce de bondade e devoção a Deus, como forma de agradar seus compatriotas devotos. Aquilo que o povo queria ver e ouvir era exatamente o que eles apresentavam, uma questão mercadológica de oferta e demanda. Os fariseus eram os homens mais honrados e respeitados de seu tempo, até que Jesus, numa censura ferrenha, arrancou-lhes a máscara, revelando ao povo sua verdadeira face. A reprimenda de Jesus nos fariseus foi tão forte que nos legou o termo farisaísmo como sinônimo de hipocrisia, a tradição humana de esconder a verdadeira face.

Revelar a verdadeira face é o que as pessoas menos querem, porque é comprometedor em um mundo que exige multiplicidade identitária. Talvez por isso Nelson Rodrigues já dizia que só o rosto é obsceno, que do pescoço para baixo, podíamos andar nus.

Mas as máscaras também têm significado mercadológico: são uma questão de demanda e oferta. Quem usa quer vender a cara que os seus expectadores querem comprar, e assim todos parecem sair ganhando. O político quer passar a imagem de salvador que o eleitor quer ver. O pastor apresenta-se como o super-homem que os fiéis querem imitar. O candidato a um emprego quer passar a cara de proativo que o entrevistador procura. E assim todos são levados de roldão nessa procura pelo modelo ideal, imposto socialmente, em um mundo desajustado o suficiente para não conseguir satisfazer as sobre-humanas expectativas. É aí que entra o papel das máscaras, uma tentativa de satisfazer necessidades insaciáveis.

As máscaras que se proliferam nas sociedades hodiernas fazem-se de palavras e discursos. Não faz muito tempo, um colega comentou comigo que, na maioria das vezes, o que dizemos é apenas uma forma de esconder o que somos. Perfeito. Nós estamos vivendo a época de discurso às avessas, ou seja, para saber o que muitos homens são e o que defendem, precisa-se tão somente interpretar de forma oposta, como se usássemos um dicionário de antônimos, as suas palavras, porque a verdade é exatamente o oposto do que eles estão dizendo.

O duro é perceber que numa sociedade hipócrita como a nossa, usar máscara começa a ser questão de sobrevivência. Uns fingem que falam a verdade e outros fingem que acreditam. No final, todo mundo está fingindo o tempo todo. Parece imperar entre nós a necessidade de se agradar a gregos e troianos. Pegando a política como exemplo, quando se está fora do governo, põe-se uma máscara de oposição; quando a oposição consegue atingir o objetivo (chegar ao poder), põe a máscara que a situação derrotada jogou fora para, por sua vez, pegar novamente a antiga máscara que a oposição, agora no poder, dispensou. Como disse alguém: “Não há nada mais parecido com o governo do que a oposição no governo”. O resultado disso é a fragmentação do caráter e uma crise profunda de identidade. Lembra-me muito aquele cidadão que estava assentado no banco de uma praça,altas horas da noite, quando foi abordado por um policial que lhe perguntou: “Quem é você?”Ele respondeu: “Boa pergunta, eu gostaria de saber”. Hoje, a resposta mais adequada talvez fosse: “depende”.

Na última semana, procurei uma psicóloga para falar de minha profunda crise de identidade. Era a primeira vez que eu buscava o auxílio da psicologia legítima. Os colegas de profissão insistem em me dizer que toda pessoa que pretenda ser psicólogo, cedo ou tarde, precisa fazer análise. Juntei a orientação dos colegas à minha crise de identidade e resolvi matar dois coelhos com uma cajadada só. Ao chegar ao consultório para a primeira sessão, falei para a terapeuta de minhas raízes cristãs, dos princípios arraigados e engessados que estavam sendo confrontados pelos textos de psicologia, filosofia e sociologia. Disse-lhe que eu estava em águas turvas, sem poder apoiar os pés. Como conciliar princípios tão discrepantes em mim, principalmente nos atendimentos psicoterápicos? Como não deixar o teólogo interferir no serviço do psicólogo na clínica? Ou, ao contrário, como não permitir ao psicólogo interferir no trabalho do teólogo na igreja? Foi aí que ela me falou das máscaras e da grande necessidade de usá-las. Orientou-me que andasse com uma sacola cheia delas a fim de incorporar o homem multifacetado que nossa sociedade demanda. A partir daí, toda a entrevista girou em torno deste assunto. Consideramos que vivemos na época de personalidades multifacetadas, onde só há espaço para quem se adapta fácil a cada novo ambiente, para quem dança conforme a música e procura máscaras multicolores a fim de agradar a gregos e troianas. O resultado disso é que o homem hodierno está fragmentado em suas convicções, órfão de princípios e valores sagrados.

O pior é perceber que este mal está atingindo também a igreja, que se pretende representante de Deus na terra e, como tal, deveria pautar-se com total transparência e uniformidade. Através de mensagens eivadas de presunção de santidade singular, de superioridade religiosa, com a qual garantem o céu aos que se adaptam e o inferno aos irredutíveis, muitos líderes e pregadores religiosos mascaram aquilo que há de mais incômodo nos recônditos da alma humana: um amontoado de segredos miseráveis. É difícil aceitar que estamos no mesmo barco, que temos as mesmas fraquezas, os mesmos anseios, que, se o barco afundar, vai todo mundo para o fundo do mar.

Há pouco tempo, numa reunião entre irmãos, comentávamos que os líderes evangélicos de antigamente cometeram muitas atrocidades com os seus liderados em nome de um ideal de santidade inatingível, mas que são passiveis de absolvição, porque acreditavam realmente naquilo que ensinavam. Os de hoje, com raras exceções, é claro, nem eles mesmos acreditam no que estão ensinando e, se continuam ensinado errado, é por uma questão de conveniência. E o pior: muitos féis já começaram a perceber a desonestidade intelectual de seus líderes, mas, também por uma questão de conveniência e conforto momentâneo, fingem que acreditam em tudo.

Por fim, parece estar impingido na cabeça das pessoas que viver de forma sincera (sem cera) é arriscado demais para valer a pena e, por isso, poucos são os que se dão à ousadia de tentar, assumindo as reais ameaças à sua sobrevivência em quaisquer instituições que frequentem. Este é o mundo que temos, e cada um faz uso da arma que tem, ou melhor, da máscara que tem, afinal de contas, se cobrir a face virou mesmo questão de sobrevivência...    parece que foi no filme Uma Linda Mulher que uma prostituta, interpretada pela arrebatadora Julia Robert, diz: a gente precisa sobreviver.



Orgulho Humano


 O ser humano é orgulhoso por natureza. Seu orgulho o levou a considerar-se superior a todas as outras criaturas terráqueas. Acha que é a coroa da criação, feito à imagem e semelhança de Deus e que tem uma alma imortal. “A vida humana aqui é só o prelúdio da eternidade”, dizem alguns. “Não somos corpos vivendo uma experiência espiritual; somos espíritos, vivendo uma experiência corporal”, afirmam outros. E assim cada um pinta a existência humana com as cores que lhe parecem mais adequadas.

Talvez a maneira mais expressiva de revelação do orgulho humano seja a fuga da realidade. O instinto de sobrevivência leva as pessoas a vestirem a vida com um otimismo que não tem conexão com o real. Como no filme “A vida é Bela” em que o ator principal está com o infante filho no campo de concentração nazista e tenta enganar o menino fazendo-o acreditar que estão apenas jogando um jogo que resultará em um prêmio ao vencedor. A ideologia passada nesse filme é a mesma passada pelos pregadores excessivamente otimistas que anunciam que no final tudo dará certo.

O homem não aceita que ele é igual a qualquer outra criatura, pelo menos no que diz respeito ao processo natural das coisas: nascemos, sofremos e morremos. Na realidade, o que nos diferencia de outras espécies é que somente nós temos a capacidade de nos iludirmos; e as nossas ilusões não nos deixam reconhecer que um dia nossas lutas resultarão em nada diante da inexorabilidade da correnteza que a tudo arrasta para a extinção, e que seremos, por fim, esquecidos de tudo e de todos.

A saída é negar, fugir, iludir-se, dizer que a vida é bela, que as lutas vêm para nos aperfeiçoar, que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. O pior é que, como dizia uma desprezível criatura, uma mentira repetida várias vezes acaba se transformando numa verdade.

Sartre defendeu na obra A Náusea que a existência humana é absurda. É absurda porque o resultado de nossa luta é aquela coisa absurda, o fim inevitável de todos os homens. Hoje mesmo, enquanto cortava o cabelo no sindicato dos vigilantes, comentava com o cabeleireiro que, daqui a pouco tempo, será o meu filho que estará ali assentado – se ele quiser ser sócio do sindicato, é claro - e, “sem dúvida, não será o senhor” – eu disse ao cabeleireiro – “que estará usando a tesoura”. Ele acenou com a cabeça e me olhou com tristeza, pois já está no lado poente da vida.

Mas o danado é que a gente se apaixona cegamente por essas quimeras que a vida oferece, como um homem que se enamora cegamente de uma mulher a ponto de não ver defeitos e negar todas as suas peripécias em nome da paixão frenética. Quando indagado sobre a razão de estar com ela e amá-la tanto, ele responde: Não sei. Talvez a única razão seja ela.

Nelson Rodrigues escreveu sobre um homem que amava loucamente sua esposa. Um dia, ao ouvir o rumor de que estava sendo traído, disse-lhe: “Se um dia eu lhe flagrar na cama com outro homem, em pleno ato, por favor negue, diga que não é verdade e eu acredito em você”. Assim somos nós: somos traídos continuadamente por essa diva chamada vida, mas basta ela abrir um sorriso, sinalizar que não é nada do que estamos pensamos e nos convidar de volta a algum deleite, acabamos por acreditar novamente nela. 

Será que em algum dia o ser humano terá evoluído o bastante para aceitar sua situação deplorável de ser humano? Ou seremos eternos iludidos, já que, como dizia uma professora, iludir-se é uma questão de sobrevivência?

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Poemas para refletir a condição humana

Bocage

No seu dia natalício

Do Tempo sobre as asas volve o dia,
O ponto do meu triste nascimento;
Vedado à luz do sol este momento,
Fúrias, com vossos fachos se alumia!

Nascido apenas, pavorosa harpia
Ao berço me voou de imundo alento,
Impestando o misérrimo aposento,
Eis me roga esta praga horrenda, impia:

"Esteja sempre o bem de ti remoto,
Vivas sempre choroso, amargurado,
Dane teus dia o destino imoto."

Caiu-me a imprecação do monstro alado,
Curto mil males, e entre sombras noto
Outros com que me espera ao longe o fado.


DEPOIS DE ALGUM TEMPO VOCÊ APRENDE

Depois de algum tempo você aprende a diferença,
a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E você aprende que amar não significa apoiar-se,
que companhia nem sempre significa segurança,
e começa a aprender que beijos não são contratos,
e que presentes não são promessas.
Começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhos adiante,
com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança;
aprende a construir todas as suas estradas no hoje,
porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos,
e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão.
Depois de um tempo você aprende que o sol queima se ficar exposto por muito tempo,
e aprende que não importa o quanto você se importe,
algumas pessoas simplesmente não se importam...
aceita que não importa quão boa seja uma pessoa,
ela vai ferí-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la por isso. Aprende que falar pode aliviar dores emocionais,
e descobre que se leva anos para se construir confiança e apenas segundos para destruí-la,
e que você pode fazer coisas em um instante, das quais se arrependerá pelo resto da vida;
aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distâncias,
e o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida,
e que bons amigos são a família que nos permitiram escolher.
Aprende que não temos que mudar de amigos se compreendemos que eles mudam;
percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos.
Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa,
por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas;
pode ser a última vez que as vejamos.
Aprende que as circunstâncias e os ambientes tem influência sobre nós,
mas nós somos responsáveis por nós mesmos.
Começa a aprender que não se deve comparar-se com os outros,
mas com o melhor que pode ser.
Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer ser, e que o tempo é curto.
Aprende que não importa onde já chegou, mas onde se está indo,
mas se você não sabe para onde está indo qualquer lugar serve.
Aprende que ou você controla seus atos ou eles o controlarão,
e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade,
pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem dois lados.
Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer, enfrentando as conseqüências.
Aprende que paciência requer muita prática.
Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute
quando você cai é uma das poucas que o ajudam a levantar-se;
aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que se teve e o que você aprendeu com elas
do que com quantos aniversários você celebrou;
aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha;
aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens;
poucas coisas são tão humilhantes... e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso.
Aprende que quando se está com raiva se tem o direito de estar com raiva, mas isso não te dá o direito de ser cruel.
Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer que ame
não significa que esse alguém não o ama com tudo o que pode,
pois existem pessoas que nos amam, mas simplesmente não sabem como demonstrar ou viver isso.
Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém;
algumas vezes você tem que aprender a perdoar-se a si mesmo.
Aprende que com a mesma severidade com que julga,
você será em algum momento condenado.
Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido,
o mundo não pára para que você o conserte.
Aprende que o tempo não é algo que possa voltar para trás, portanto,
plante seu jardim e decore sua alma ao invés de esperar que alguém lhe traga flores,
e você aprende que realmente pode suportar...
que realmente é forte e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais.
Descobre que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida!
Nossas dúvidas são traidoras
e nos fazem perder o bem que poderíamos conquistar,
se não fosse o medo de tentar.

Shakespeare



CONFIANÇA NA MISERICÓRDIA DIVINA

de Bocage

Lá quando a Tua voz deu ser ao nada,
Frágil criaste, ó Deus, a Natureza;
Quiseste que aos encantos da beleza
Amorosa paixão fosse ligada.

Às vezes em seus desgostos desmandada,
Nos excessos desliza-se a fraqueza:
Fingem-Te então com ímpeto, e braveza
Erguendo contra nós a destra armada.

Ó almas sem acordo, e sem brandura,
Falsos órgãos do Eterno! Ah!… Profanai-O,
Dando-Lhe condição tirana e dura!

Trovejai, que eu não tremo e não desmaio;
Se um Deus fulmina os erros da ternura,
Uma lágrima só Lhe apaga o raio.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Jeremias e a Soberania de Deus

O capítulo 18 do livro de Jeremias apresenta uma das mais importantes parábolas do Antigo Testamento. É um tratado acerca da soberania de Deus sobre todas as coisas. Em um momento de grandes turbulências no cenário mundial - injustiça, guerra, idolatria e aparente prevalência do mal - e em que se desenhava o cenário para o fim trágico da nação judaica, o profeta Jeremias recebe ordens de Deus para descer à olaria mais próxima a fim de que pudesse entender a forma como Deus estava trabalhando com o seu povo; e não só com Judá, mas também com as nações circunvizinhas. Ao contemplar o trabalho do oleiro sobre as rodas, o profeta vai apreender a maneira de Deus cumprir o seu propósito na história, tendo como centro de ação o seu povo. O presente estudo é um convite a que desçamos à casa do oleiro com o profeta e, ali, em meio às ferramentas do artífice,  entendamos que, assim como o oleiro  tem domínio total sobre o barro para fazer dele o objeto que lhe apraz, Deus tem total soberania sobre as nossas vidas.


I. JEREMIAS DESCE À CASA DO OLEIRO

Aproximadamente no início do reinado do rei Jeoaquim, quando Judá vivia um dos períodos mais críticos de sua história, Jeremias recebeu ordem de Deus para que visitasse a casa do oleiro, provavelmente situada no extremo sul de Jerusalém, nas cercanias da porta do oleiro e do vale dos filhos de Hinon. Deus objetivava com isso ensinar uma importante lição a Judá, tendo como referência a forma como o oleiro maneja a argila. Como este tipo de trabalho era muito comum por todo o oriente próximo, ninguém deixaria de entender a lição passada pelo profeta.

O oleiro é um artesão que trabalha o barro para produzir cerâmica, material que servia para se fazer os vasos rudimentares da época do profeta. O trabalho consistia em se pegar o barro e deixá-lo exposto ao tempo até ficar pronto para o uso. Em seguida o oleiro o misturava com mais água e o pisava até que argila ganhasse elasticidade. Depois a lama era levada para uma bancada, onde, mediante a adição paulatina de água, chegava a consistência certa para ser trabalhado. Algumas vezes, aditivos como gesso moído era adicionado ao barro para que o artigo acabado resistisse melhor ao calor do forno e, portanto, pudesse ser usado para cozinhar. Isaías fala, no capítulo 41.25 de seu livro sobre o pisotear do barro.

Jeremias descreve que o oleiro estava trabalhando o barro sobre as rodas (Jr 18.3). Naqueles dias, uma roda achatada de madeira, barro ou gesso era girada horizontalmente, numa bancada, à mão ou num eixo que atravessava a bancada. Uma pessoa empurrava a roda enquanto a outra moldava o barro sobre ela. Segundo Ralph Gower, somente no ano 200 a.C., os que trabalhavam neste ofício entenderam que uma segunda roda podia ser acrescentada ao eixo sobre o banco ao nível do pé, e empurrada pela mesma pessoa que fazia o pote.1 No livro apócrifo de Eclesiástico, escrito neste período, temos uma descrição deste tipo de segunda roda: “O mesmo sucede com o oleiro que entregue à sua tarefa, gira a roda com os pés... com o seu braço dá forma ao barro, torna-o maleável com os pés” (Eclo 38.32). Além das rodas, outros instrumentos como pedregulhos, conchas, instrumentos de osso e cacos quebrados eram usados para alisamento e polimento da superfície, e também na modelagem e decoração.

Na roda do oleiro, os vasos eram modelados e em seguida postos a secar. Somente depois de seca, a vasilha era decorada, conforme o gosto do oleiro, o qual usava várias técnicas e materiais para a decoração. Alguns vasos eram decorados, riscando-se a sua superfície; em outros, cordas eram pressionadas sobre eles ainda mole formando sulcos; havia também o polimento a base de pedaços de ossos, cerâmica ou metal. Depois de secos e decorados, segundo a vontade do oleiro, os objetos eram queimados em um dentre os vários tipos de fornos.

A grande importância desta passagem bíblica, todavia, consiste em que o poder do oleiro sobre o barro é usado como símile para ensinar acerca da soberania de Deus sobre todas as coisas, principalmente sobre as nações. O mesmo recurso de linguagem já havia sido usado por Isaías para se referir à obra da criação de Deus (Is 29.16; 45.9; 64.8), e também seria posteriormente usado por Paulo para se referir à soberania de Deus sobre tudo e todos (Rm 9.21).

Ao verificar o cuidadoso trabalho do oleiro sobre as rodas, Jeremias aprende uma grande lição: a maneira como Deus lida com as nações. O absoluto domínio da vontade do oleiro sobre o barro, o mistério e a maravilha de sua capacidade criadora o impressionaram. Talvez o profeta já tivesse visto tantas vezes o trabalho efetuado nas olarias circunvizinhas, mas nuca houvesse apreendido tão enriquecedora lição. Agora, considerada a ordem de Deus para que ele fosse à olaria, bem como a iminente desgraça de Judá, o profeta estava aberto para uma experiência inédita, e então conseguiu ver o esplêndido significado de um ato tão simples e corriqueiro: Deus estava se comparando àquele oleiro, e comparando Israel àquele barro. Depois de observar o trabalho daquele artífice, Jeremias vai dizer aos seus compatriotas que eles, apesar de tanto se jactarem de sua força e de suas tradições, não passavam de substância frágil, moldável e tão sujeitos à vontade soberana de Deus quanto o barro à vontade do oleiro.

O que não se pode perder de vista neste relato é o fato que mais chamou a atenção do profeta. Havia muitas ferramentas ali e muitos movimentos aconteceram, porém a visão de Jeremias focou o momento em que o vaso se quebrou na mão do oleiro por alguma razão. O oleiro, todavia, não se desfez daquele barro, mas o trouxe de volta para a roda e o trabalhou até que ganhasse nova forma. Era uma metáfora do que aconteceria ao povo de Judá: ele seria quebrado e refeito com novo formato, consoante o gosto do Oleiro divino.


II. A SOBERANIA DE DEUS

Já vimos que o objetivo de Deus em enviar Jeremias à casa do oleiro foi ensinar sobre a sua soberania. Mas o que significa precisamente dizer que Deus é soberano? Antes de definirmos a soberania divina, precisamos discorrer sobre alguns dos atributos naturais de Deus, os quais nos darão base para entendê-la. Não é nossa intenção aqui esgotar o assunto, apenas queremos situar a soberania divina dentro da totalidade de seu caráter, para não corrermos o riscos de inventarmos um deus arbitrário, como aqueles inventados pela mitologia grega. A soberania divina se sustenta neste tripé: onipotência, onisciência e onipresença.

Deus é onipotente. Isso significa que Deus é poderoso para fazer tudo o quanto pretende, ou seja, Ele faz tudo o que está de acordo com o seu propósito (Gn 18.14;Is 14.27; Jó 42.1). Realmente, nada nem ninguém pode resistir à execução de sua vontade, como bem o demonstra a oração do rei Josafá: “(...) Ah, Senhor, Deus de nossos pais, porventura não és tu Deus no céu? Pois tu és dominador sobre todos os reinos das gentes, e na tua mão há força e poder, e não há quem te possa resistir”(2 Cr 206).

Deus é onisciente. Significa que a mente de Deus tem ciência de tudo o que existe, reais e potenciais, abrangendo passado, presente e futuro (Sl 139; Is 40.28), como bem o demonstra o escritor aos hebreus: “E não há criatura alguma encoberta diante dele; antes, todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com que temos de tratar” (4.13).

Deus é onipresente. Significa que a sua presença se estende a todos os lugares do Universo (1 Rs 8.27), como bem o expressou o rei Davi: “Para onde me irei do teu Espírito ou para onde fugirei da tua face? Se subir ao céu, tua aí estás; se fizer no Seol a minha cama, eis que tu ali estás também; se tomar as asas da alva e habitar nas extremidades do mar, até ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá” (Sl 139. 7-9).

Agora sim, com base nos atributos divinos supracitados, podemos definir a soberania de Deus como a autoridade inquestionável que ele exerce sobre todas as coisas criadas, quer na terra, quer nos céus, de tudo dispondo conforme seus conselhos e desígnios.1


Soberania não é arbitrariedade

Não podemos estudar a soberania de Deus à parte de seus atributos morais sem o risco de apreendê-lo como um deus arbitrário, ou seja, caprichoso, despótico e sem regras, como eram os imprevisíveis e malévolos deuses das nações pagãs. Todas as ações de Deus são delineadas pela totalidade de seus atributos morais. Deus é santo (Lv 14.44), bom (Sl 100.5),amor (1 Jo 4.10), misericordioso (Sl 103.8), fiel (Dt 7.9), verdadeiro (Sl 33.4), justo e reto (Sl 72.2). Outrossim, a sua infinita sabedoria não O deixa cometer erros, pois lhe dá discernimento de tudo que existe ou possa vir a existir. Ele aplica com sabedoria todo o seu conhecimento. Todas as obras de suas mãos são feitas pela grandeza de sua sapiência (Sl 104.24), e assim Ele pode tirar ou colocar reis, mudar os tempos e estações conforme lhe parecer bem (Dn 2.21). Nenhum dos atributos divinos é mais importante do que outro nem se sobrepõe um ao outro. Destarte, Deus não poderá fazer nada – nem sequer subirá ao seu pensamento – que se choque com a santidade de seu caráter. É por isso que podemos confiar totalmente Nele.

Eleição e predestinação

Predestinar significa determinar de antemão, escolher [os justos] desde toda a eternidade, e se aplica aos princípios de Deus inclusos na eleição. A eleição é a escolha feita por Deus de, “em Cristo”, salvar um povo e constituí-lo para Si mesmo, desde a fundação do mundo. A predestinação abrange o que acontecerá ao povo de Deus (todos os crentes genuínos em Cristo). A Bíblia frequentemente usa o verbo grego proorizo, “demarcar de antemão”, determinar antes”, “preordenar”, para traduzir a ideia segundo a qual Deus predestinou um povo para si desde tempos eternos, não com base em qualquer mérito previsto nas pessoas, mas somente por causa de sua vontade soberana. Este assunto tem suscitado muitas controvérsias e mal-entendidos entre os estudiosos das Sagradas Letras. Mas A Bíblia ensina realmente a predestinação? Vejamos.

Em Rm 8.28-30, lemos: “Sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto. Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes a imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o Primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a estes também chamou, e aos que chamou, a estes também glorificou”. Na carta Aos Efésios, Paulo diz que Deus nos escolheu em Cristo antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença, e que em amor, Deus nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade (ver vv 4-6). Na sequência, no versículo 11, Paulo reforça dizendo: “Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho de sua vontade”. No livro do Apocalipse, João fala de pessoas cujos nomes foram escritos no livro da vida desde a fundação do mundo, como também de outras que não tiveram o mesmo privilégio (ver Ap 13.7,8; 17.8). Todavia, quando os escritores neotestamentários falam sobre a razão de Deus nos ter elegido e reservado para Si, isso não significa que Deus arbitrariamente determinou uns para a vida eterna e outros para a condenação eterna, mas objetivam deixar claro que não somos salvos por causa de algum mérito nosso, foi única e exclusivamente pelo propósito soberano de Deus e de sua incomensurável graça que Ele nos concedeu em Cristo Jesus desde os tempos eternos (1 Tm 1.9). O comentário da Bíblia de Estudo Pentecostal transcrito a seguir resume mui satisfatoriamente a predestinação/eleição. .

A PREDESTINAÇÃO (gr. Proorizo) significa “decidir de antemão” e se aplica aos princípios de Deus inclusos na eleição. A eleição é a escolha feita por Deus, “em Cristo”, de um povo para si mesmo (a igreja verdadeira). A predestinação abrange o que acontecerá ao povo de Deus (todos os crentes genuínos em Cristo).

(1) Deus predestina seus eleitos a serem: (a) chamados (Rm 8.30); (b) justificados (Rm 3.24); (c) glorificados (Rm 8.30); (d) conformados à imagem de seu Filho (Rm 8.29); (e) santos e inculpáveis (1.4); (f) adotados como filhos (1.5); (g) redimidos (1.7); (h) participantes de sua herança (1.13; Gl 3.14); (i) criados em Jesus Cristo para as boas obras (2.10).

(2) A predestinação, assim como a eleição, refere-se ao corpo seletivo de Cristo (i.e., a verdadeira igreja), e abrange indivíduo somente quando incluso neste corpo mediante a fé viva em Jesus Cristo (1.5,13; cf. At 2.38-41; 16.31).1

Existem duas teorias sobre a Eleição divina: a calvinista e a arminiana. A teoria calvinista vem de João Calvino; e a teoria arminiana tem sua origem em Armínio, que foi discípulo de Calvino. Segundo a posição calvinista, a salvação é algo que depende única e exclusivamente de Deus, e o homem não tem nenhuma participação. Dessa forma, Deus, em sua soberania, escolheu, desde a eternidade, salvar alguns, ao mesmo tempo em que resolveu não salvar outros. Sendo assim, os salvos estão incondicionalmente salvos, e os perdidos, incondicionalmente perdidos. Quando questionados sobre o fato de que, posto desta forma, a doutrina da predestinação exclui totalmente o livre arbítrio, respondem os calvinistas que o livre arbítrio é a capacidade de se fazer o que se quer, mas é Deus quem dá os desejos e afeições que controlam a ação.

Calvinismo e Arminianismo

Para os arminianos, a salvação é uma realização da livre graça de Deus, mas a pessoa tem a liberdade para rejeitar ou aceitar esta oferta graciosa. Com base no clássico texto de Romanos 8.29-31: “Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que Ele seja o Primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a estes também chamou, e aos que chamou, a estes também glorificou”, os arminianos argumentam que Deus, na sua presciência, determinou, desde a eternidade, amar e redimir a raça humana através de Cristo. A predestinação, portanto, diz respeito à igreja, passando a fazer parte as pessoas individualmente somente a partir do momento em que elas passam a fazer parte deste corpo coletivo mediante a fé permanente em Jesus. Os arminianos argumentam ainda que a predestinação (v 30) se aplica aos propósitos de Deus referentes à eleição. Esta eleição, segundo o conceito arminianista, trata da escolha feita por Deus de um povo para si, porém é uma escolha feita “em Cristo”. O povo escolhido é a “Igreja Verdadeira”, incluindo aí todas as ocorrências que abrangem os indivíduos.

O profeta jeremias e a soberania de Deus

Em quarenta anos de ministério profético, Jeremias testemunhou crises e convulsões no cenário nacional e internacional. Ele testemunhou a bancarrota dos impérios assírio e egípcio diante da elevação da Babilônia. Enquanto estes fatos aconteciam, Jeremias assitia Judá em agonias diante da iminência da destruição, servindo de joguete aos interesses das potências beligerantes. Ora buscava socorro no Egito, ora apelava para a Babilônia. Enquanto isso, Aquele que fora sempre a sua fortaleza em tempos de angústia parecia esquecido. Jeremias viu um rei justo (Josias) tombar no campo de batalha (2 Cr 35.35), e reis ímpios subirem ao trono; assistiu a execução sumária do profeta Urias que, como ele, anunciava a verdade de Yhavé (26.20-24) . Foi vítima de desprezo e conspirações em todos os seguimentos (Jr 11.19-21; 12.6; 20.1,2; 18.1-17). A sua mensagem de uma possível destruição de Jerusalém esbarrava com a presunçosa Teologia do Templo (7.4), e parecia inócua diante da cada vez mais crescente iniquidade de seu povo. O profeta pressentia que a nação judaica estava agonizando os seus momentos finais. Movido, então, pelo chamamento divino, entrega-se à ação inútil de chamar o povo ao arrependimento. Os sentimentos do profeta, impressos nas páginas de seus dois livros (Jeremias e Lamentações), mostram-nos que ele, apesar da dureza do povo, acreditava numa possível intervenção de Deus em favor de Judá, tanto é que ele vaticinava a destruição, mas torcia para que as suas palavras não se cumprissem. Como a nação eleita não mostrava nenhum sinal de arrependimento, o profeta derrama seu coração em oração intercessora para que Deus tenha misericórdia de seu povo (ver cap.14). Porém ouve de Deus a ordem para que não mais intercedesse por Judá, então o profeta começou a perceber que o fato de aquela nação ser detentora das promessas do Senhor a abraão não a preservaria incólume, e as suas expectativas foram se arrefecendo à medida em que o quadro se agravava.

Todo o conturbado cenário acima descrito leva o profeta ao desespero existencial e fá-lo enxergar uma aparente soberania do mal em contraste com uma suposta incapacidade de Deus. Nas palavras dele mesmo: “Por que serias como um homem surpreendido, como o guerreiro que não pode livrar?” ( Jr 14.9). A resposta de Deus a Jeremias não foi a promessa de livramento, nem uma explicação sobre a sustentação de sua promessa a Abrão, mas uma lição prática: “Vai à casa do Oleiro e lá te farei ouvir as minhas palavras”. Ali, observando o manejo do artífice com o barro sobre as rodas, Jeremias aprendeu que Deus detém o controle absoluto de tudo o que existe e acontece, que o mal não prevalecerá, que no final o seu propósito se mostrará firme. Como o vaso se quebrou na mão do oleiro, e este voltou a fazer um novo vaso conforme o seu desejo, Deus estava – e está – determinando o curso da história humana da forma que lhe apraz, ainda que, às vezes, não vejamos nenhuma evidência disto. Foi sem dúvida a cura para o desespero do profeta.


III. O CRENTE E A VONTADE DE DEUS

Deus é o Oleiro, nós somos o barro. À vezes, as contingências da vida tornam difícil a aceitação desta verdade. Submeter-se única e exclusivamente à vontade de Deus tem sido um dantesco desafio para os homens de todos os tempos, uma vez que o orgulho é parte integrante da essência humana. Foi assim nos dias de Jeremias. É assim ainda mais em nossos dias. Até porque há uma dificuldade muito grande em se conciliar a doutrina bíblica do livre arbítrio humano com a doutrina da soberania de Deus. Outrossim, a cultura pós- iluminista criou um homem autônomo, autossustentável, abusivamente livre, que constrói, ele próprio, o seu próprio destino e determina a história; logo não precisa de Deus nem o considera. Mas a Bíblia tem falado para os homens de todos os tempos . Ela, amiúde, relata casos de uma relação conflituosa entre a criatura e o Criador, o barro e Oleiro (Sl 2.9; Is 64.8) . Em alguns casos, vê-se a intenção de inversão dos papéis por parte do barro: “Vós tudo perverteis, como se o oleiro fosse ao barro e dissesse do seu artífice: Não me fez; e o vaso formado dissesse do seu oleiro: Nada sabe”(Is 29.16). Mas a inquestionabilidade do Oleiro é reivindicada: “Ai daquele que contender com o seu Criador, caco entre outros cacos de barro! Porventura, dirá o barro ao que o formou: Que fazes?” (Is 45.9). E terá que ser reconhecida: “Mas agora, ó Senhor, tu é o nosso Pai; nós, o barro, e tu, o nosso oleiro; e todos nós, obra de tuas mãos” (Is 648).

Existe hoje no meio de alguns seguimentos evangélicos um desrespeito total à soberania de Deus. Vemos pessoas questionando, inquirindo, reivindicando e até “encurralando”o Senhor, como se Este estivesse subordinado a eles e, portanto, tivesse a obrigação de atender às exigências dos reivindicadores. Aos tais, a voz de Paulo ecoa pelos séculos: “Mas, ó homem, quem és tu que a Deus replicas? Porventura a coisa criada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim?” (Rm 9.20). Ademais, como observa o pastor Claudionor Andrade, é chegado o momento de encararmos com seriedade a soberania de Deus. O mesmo Oleiro que de uma argila disforme formou Israel, também nos chamou de entre as nações, constituindo-nos um povo santo, especial e de boas obras.

CONCLUSÃO

A aula de hoje nos convidou a descer à casa do oleiro com Jeremias, a fim de aprendermos que somente um conhecimento prático do caráter de Deus, conforme descrito nas Escrituras, capacita o crente a encarar as circunstâncias da vida com fé, mudar o que ele pode mudar e conviver com o que ele não pode alterar, consciente de que Deus é soberano, está no controle de tudo o que acontece, e a sua vontade não pode ser frustrada. Como sua soberania está em harmonia total com os atributos do seu caráter santo e com a sua sabedoria infinita, podemos, confiantemente, submeter-nos ao seu senhorio.

O Fator Melquesedeque

UM LIVRO QUE NÃO PODE FALTAR NO REPERTÓRIO DO CRISTÃO

O fator Melqisedeque: o testemunho de Deus nas culturas através do mundo (Mundo Cristão, 1995, tradução de Nedy Siqueira), de autoria de Don Richardsoni e publicado originalmente com o título Inglês Eternit in their hearts (1981) é uma obra de caráter cristão-missiológico que se tem projetado como sempre atual, amiúde lida e relida por muitos leitores do seguimento cristão.

Don Richardson objetiva mostrar que a revelação de Deus à humanidade acontece em dois níveis, que ele chama de Fator Abraão e Fator Melquisedeque. O primeiro fator é uma referência à revelação especial de Deus na Bíblia, tendo como veículo principal a nação de Israel, cujo progenitor é Abraão. O segundo fator diz respeito à revelação geral-original do Criador a todos os povos, de todas as culturas, muitos dos quais, em sua forma primitiva de viver, ainda deixam transparecer alguns resquícios alojados em suas consciência acerca do projeto de Deus para o mundo, e cujo referencial maior é o cananeu Melquisedeque, o qual, apesar de fazer parte de um povo alheio à aliança de Deus com Abraão, demonstrou um conhecimento considerável a respeito da mesma quando se encontrou com este patriarca.

O livro se estrutura em duas partes: 1) O mundo preparado para o evangelho – o fator Melquisedeque e 2) O evangelho preparado para o mundo – o fator Abraão. Nos quatro primeiros capítulos (parte 1), Richardson desenvolve a ideia que ele denominou de Fator Melquisedeque, primeiramente trazendo ao conhecimento do leitor fatos curiosos ocorridos entre povos primitivos e que mostram um conhecimento, ainda que remoto, do verdadeiro Deus entre eles. Assim sendo, no primeiro capítulo, denominado Povos do Deus remoto, são alguns bem primitivos, como os cananeus e os gedeo da Etiópia, e outros relativamente civilizados, como os atenienses e o incas. A cada um desses povos, o autor refere um acontecimento que aponta para a revelação original de Deus, a qual foi perdendo a tonalidade na consciência deles com o passar do tempo, mas que não se perdeu de todo. Por exemplo, Richardson refere-se aos atenienses e ao seu altar ao Deus desconhecido, atribuindo a origem deste conceito a um certo Epimênides, cuja orientação sobre um deus desconhecido teria salvado a cidade de Atenas de uma grande peste. Tendo os atenienses já oferecido ofertas a todos os seus deuses e não tendo cessado a mortandade, Epimênides orientou que precisavam oferecer sacrifícios a um deus cujo nome era desconhecido, orientação que, seguida a risca, pôs fim à peste. As outras narrativas atinentes aos outros povos também se mostram bem convincentes.

No capitulo dois – Povos do livro perdido – o autor fala de uma crença muito comum entre alguns povos da região da Birmânia e adjacências. Segundo aqueles povos, os seus antepassados serviam a um único Deus – cada um cita um nome de acordo com o idioma falado, não obstante os significados serem bem parecidos – o qual lhes deu um livro que continha as leis da divindade, mas de alguma maneira, o livro se perdeu – cada um cita um motivo – trazendo maldição sobre eles. Segundo essas crenças, há uma promessa antiga, propalada pelos seus profetas – há também profetas entre eles – segundo a qual um dia aparecerá um homem branco trazendo de volta o livro que os libertará da servidão e lhes mostrará o caminho da felicidade. Vale salientar que, embora alguns destes povos ofereçam sacrifícios a outras divindades a fim de apaziguar-lhes a ira, reconhecem que há somente um Deus, criador de todas as coisas. A visão que estes povos têm da única Divindade é bem parecida com a cosmovisão judaico-cristã. Temos como exemplos os Karen da Birmânia , cujos hinos anunciam e exaltam um único Deus verdadeiro que eles chamam de Y’wa, e os kachin, do norte da Birmânia, cujo deus Karai Kassang é o Glorioso que tudo cria e tudo sabe.

Richardson  mostra a evidência de um monoteísmo nativo nas crenças destes povos, bem como alguns paralelos entre essas crenças e algumas doutrinas das Escrituras, por exemplo, o conceito de um Deus único, Criador do Universo, a noção de desobediência original contra a Divindade, a promessa de um Salvador enviado para trazer a verdade e iluminar aqueles que estão em trevas espirituais.

Na seqüência, o livro apresenta alguns povos de costumes muito exóticos, cujas tradições serviam de empecilho à propagação do evangelho, e as estratégias usadas por missionários para remover os empecilhos, estratégias inspiradas na percepção de uma correlação entre aqueles costumes exóticos e alguns pontos doutrinários das Escrituras. Os Sawi da Nova Guiné são um exemplo. Além de canibais, este povo pratica a “caça cabeça”, um costume que consiste em selecionar pessoas da própria comunidade (normalmente uma família) e, num ato de traição, cortar-lhes as cabeças para estacá-las em suas plantações a fim de atrair fecundidade como favores dos deuses. A tradição do corta cabeça enaltece os traidores, que são aqueles encarregados de iludir suas vítimas com uma falsa amizade, literalmente engordando-as para, por fim, matarem-nas. Sendo os traidores muito enaltecidos nesta cultura, quando a mensagem do evangelho anunciou um Jesus traído por um Judas, Judas ganhou um lugar de honra e Jesus ganhou um lugar de desprezo. Segundo esta mesma tradição, somente um ato poderia proteger uma família ou pessoa de qualquer traição deste tipo: quando um pai sawi oferecia seu filho para outro grupo como uma “criança da paz”, tanto as diferenças antigas entre eles eram canceladas, como eram prevenidas futuras ocasiões de perfídias. Neste caso, como uma forma de remover o empecilho à propagação do evangelho, o autor, ele mesmo no campo missionário, apresenta Jesus como a última criança da paz, fazendo um paralelo entre este costume sawi e o ato de Deus ter oferecido seu Filho como meio de desfazer a inimizade entre Ele e a humanidade perdida. Com este exemplo, Richardson mostra que mesmo povos com costumes tão selvagens, parecem possuir resquícios de uma revelação geral de Deus que se externam em similitudes entre alguns de seus atos e a revelação especial de Deus na Bíblia.

No capítulo que encera a primeira parte do livro em apreço, o autor trata de teorias estranhas (sic), ou mais precisamente, eruditos com teorias estranhas, que se levantaram na esteira da Teoria da Evolução de Charles Darwin, para tentar explicar cientificamente origem da religião e a evolução que se deu do politeísmo para o monoteísmo entre aqueles povos. Ganha destaque a teoria do inglês Eduard B. Tylor. que defende que a ideia de alma humana, desenvolvida pelos primitivos, poderia ter sido o embrião natural do pensamento do qual se desenvolveram todos os demais conceitos religiosos, e que, portanto, as religiões devem ter nascido da compreensão de gente primitiva que atribuía não só aos humanos, mas também a outras entidades, a existência de uma alma. Para Tylor, a evolução do politeísmo para o monoteísmo inspirou-se em alguns fenômenos de certas sociedades humanas, sendo o principal deles a estratificação das classes, que foi pouco-a-pouco elevando a aristocracia ao governo das massas, até que um único aristocrata assumiu o governo soberano, o que teria inspirado mentes religiosas fecundas a, paralelamente, elevar um membro do panteão de deuses locais acima das outras divindades, culminando no monoteísmo. Mas Richardison mostra, com sólida argumentação, a insustentabilidade da  teoria de Tylor, há muito já refutada pela ciência,  e quais as suas conseqüências deletérias no decorrer da história.

Na segunda parte do livro em apreço, Richardson aborda o que ele chama de revelação especial, feita a Abraão a partir do capítulo 12 de Gênesis, conhecida pelos estudiosos da Bíblia como “aliança abraâmica . Após recapitular alguns aspectos da revelação geral, como por exemplo: a existência de Deus, a criação, a rebelião e queda do homem, a necessidade de um sacrifício para aplacar a Divindade, o grande Dilúvio, verdades conhecidas dos mais diversos povos primitivos , o autor propõe que a aliança abraâmica se levanta como uma ilha em meio ao mar da revelação geral.

Richardson classifica as promessas feitas a Abrão em duas categorias. 1) As promessas da linha de cima: De ti farei uma grande nação e te abençoarei, e engrandecerei o teu nome. Sê tu uma bênção; abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem;  e 2) As promessas da linha de baixo: Em ti serão benditas todas as famílias da terra. A compreensão dessa classificação é que o plano Deus era abençoar Abraão e os seus descentes (promessas da linha de cima) para, por meio dele, abençoar todos os povos da terra (promessas da linha de baixo).

Como exemplo prático do propósito de Deus de abençoar os gentios por meio da nação eleita, são apresentados casos no antigo Testamento em que os filhos de Abraão foram uma bênção para os povos não-judeus. Dentre os muitos exemplos, vemos José sendo um canal de bênçãos para os egípcios, os espias de Josué abençoando Raabe e sua família em Jericó, Noemi alcançando duas mulheres moabitas. Na seqüência são apresentadas abundantes referências no Novo Testamento que mostram Deus ainda apegado ao seu antigo compromisso de abençoar os gentios por meio de Abraão, principalmente nas cartas paulinas e na epístola aos hebreus.

No capítulo seis, com o título Um Messias Para Todos, Richardson mostra o cumprimento da promessa feita abraâmica em Jesus. Ele começa fazendo um paralelo entre Isaque e Jesus, bem como entre o monte Moriá, local onde teria acontecido o sacrifício de Isaque, e o Calvário, lugar onde Jesus foi sacrificado. O objetivo da comparação é salientar que toda a vida de Jesus, sua morte e ressurreição estavam intimamente ligadas à promessa milenar de Deus, no sentido de repartir as bênçãos de Abraão entre todos os povos da terra. Esta afirmativa se encontra apoiada em abundantes referências que mostram Jesus estendendo as bênçãos de Abraão a vários gentios, como por exemplo, o centurião de Cafarnaum (Mt 8.5-13) e a mulher cananeia (Mt 15.21-28). Portanto, todas as ações de Jesus em direção a pessoas não israelitas indicavam o seu compromisso com a promessa de Deus a Abraão, de alcançar os gentios

E no último capítulo, o autor relata o plano de Deus de alcançar todos os povos evidenciado no livro de Atos, expresso na Grande Comissão delegada por Jesus aos seus discípulos, quando ordenou a estes que não se ausentassem de Jerusalém até que recebessem poder para evangelizar o mundo ((Mt 28.18-20; At 1.8). O plano de Deus de abençoar os gentios estava evidente no fato de a efusão do Espírito Santo acontecer no dia de Pentecostes, quando judeus do mundo inteiro, falantes de vários idiomas gentios, estavam reunidos em Jerusalém. A intenção de Deus de alcançar todos os gentios se evidencia mais uma vez no fato de os discípulos, após serem batizados no Espírito Santos, falarem milagrosamente vários idiomas, fazendo-se entender de todos os que se achavam em Jerusalém para a festa de Pentecostes. 

Os discípulos de Jesus, todavia, parece não terem entendido o significado da Grande Comissão, ao se mostrarem relutantes à ordem de levar o evangelho aos gentios, até que Deus tomou providências drásticas para que sua promessa a Abraão fosse cumprida. Três fatos importantes evidenciaram a ação de Deus: 1) a grande perseguição que se abateu sobre a igreja de Jerusalém (At 8.1); 2) a conversão de Saulo (At 9.1ss); 3) a destruição de Jerusalém por Tito no ano 70 A.D. Acrescenta-se ainda o fato de Deus ter ordenado a Pedro que fosse a casa de Cornélio, um gentio, a fim de que este recebesse as bênçãos do evangelho (At 10.9-23). Richardson mostra com detalhes como esses acontecimentos foram decisivos para a expansão do Reino de Deus entre os gentios. O livro se encerra com o recomendação do autor a que os leitores atentem para a linha de baixo das promessas feitas por Deus a Abraão e façam frutificar a promessa de 4.000 anos feita ao pai da fé.

Opinião pessoal
Achei O Fator Melquisedeque encantador pelo estilo cativante e pelas eloquentes ideias desenvolvidas por Don Richardson sobre as revelações de Deus para a humanidade. As histórias narradas prendem a atenção e enriquecedoras em relação às diversas culturas dos povos, culturas impregnadas do elemento religioso. É um verdadeiro tratado missiológico e, portanto, de leitura indispensável para quem aspira à obra missionária ou mesmo quem já está diretamente engajado nela. A leitura de O Fator Melquisedeque possibilita ao leitor uma visão geral e precisa do plano de Deus para a salvação de todos os homens e como ele trabalhou para executar o seu plano no decorrer da história através de pessoas que ele escolheu. Mostra também um resquício do conhecimento de Deus na mente dos pagãos, um rascunho do seu plano de salvação, o qual Ele revelou também aos gentios, materializado nos costumes e práticas religiosos destes. Já li outros livros que tratam do assunto das revelações de Deus aos povos, bem como dos costumes e culturas de povos antigos, tanto de caráter secular, como de caráter cristão, mas desconheço um autor que tenha abordado o assunto com tanta propriedade e profundidade. 

Sobre o autor
Reconhecido por seu trabalho antropológico e lingüístico, Don Richardson foi missionário em Irian Jaya, parte indonésia e ocidental da Ilha de Nova Guiné, em uma das regiões mais desconhecidas e misteriosas do planeta, habitada por tribos papuas que ainda vivem da maneira mais primitiva. É famoso conferencista e autor de vários best-sellers na área de missões, entre eles Fator Melquisedeque, Senhores da Terra e o Totem da Paz.

O sol vai nascer de novo

Que ele era um jovem de fé, ninguém duvida. Aliás, fazia questão de ostentar seu espírito religioso pelas longas e altissonantes orações; orações, diga-se de passagem, quase nunca respondidas. Mas ele dizia que nunca se deve perder a esperança, pois, como dizia o poeta, “a esperança dá ao homem os ombros que suportam o mundo”. Se alguém tentava dissuadi-lo, defendia-se dizendo que “é batendo que se abre a porta” e “é pedindo que se recebe”. Tantas vezes, ele se frustrou com os revezes da vida, mas ficou firme como o idealista incorrigível de Nietzsche: se alguém o expulsava do seu céu, ele fazia um ideal do seu inferno.

Mas um dia se sentiu definitivamente cansado, cansado de tudo e de todos. De tudo, entenda-se o trabalho, a faculdade, a igreja, a família e, mais ainda, das orações não respondidas. De todos, diga-se dos amigos, da esposa, de Deus e, mais que tudo, de si mesmo. Achou-se um ser complexo demais e que, portanto, nunca conseguiria lidar consigo mesmo. Viu-se assaltado por um amontoado de desejos que fluíam espontaneamente do recôndito de sua alma, desejos que se chocavam com um código de ética arraigado demais para ser superado. Gritou, esperneou, quis sumir...

O seu maior problema é que o sol nascia todas as manhãs, e ele não aguentava mais ver o grande astro aparecer no horizonte, e ter que, sob a sua luz, fazer as mesmas coisas enfadonhas que a tradição determinou como imprescindível. A tradição tem um comportamento para apresentar à luz do sol. Mas Havia um mundo reprimido de coisas novas, de desejos recalcados, de paixões enfurecidas, "tudo inacessível à luz da grande estrela", ele imaginava.

Uma noite, antes de ir para a cama, dirigiu-se a Deus com a seguinte prece: “Bondoso Senhor, já te fiz tantos pedidos que não tiveram respostas; conceda-me, porém, este que vou fazer agora e eu esquecerei todos os outros. Que amanhã o sol não esteja lá para mim, só para mim,porque o sol que existe é um sol para mim,e eu não aguento mais viver as mesmas coisas todos os dias”.

Mal havia pronunciado a última palavra da prece, o sono o assaltou. Sonhou com alguém que estava cantando "mas é claro que o sol vai voltar amanhã"... (Renato Russo), para quem, curiosa e ironicamente, o sol já não volta. Mas ele dormiu bem toda aquela noite.

Sete da manhã. Ao levantar-se, foi à janela e verificou que mais uma vez a sua oração não havia sido respondida. A luz do grade astro reverberou em seu rosto. Ele teria mais um longo e indigesto dia pela frente. Não se sabe se naquele dia indesejável,tudo em sua vida aconteceria como nos outros dias. Mas que o sol estava lá, isso estava. E voltaria em muitas outras manhãs, o sol que ele mesmo colocou no seu céu. O poeta deve ter-se mexido no túmulo.

Condenados à Liberdade (?)

artigos | artigo cientifico

Hoje, logo cedo, resolvi reler as páginas do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia). Para ser mais preciso, li o livro de Números, dando sequência a uma leitura exaustiva que tenho empreendido há algum tempo para ler toda a Bíblia. Em Números, há o registro da contagem dos filhos de Israel, um recenseamento ordenado por Deus (por isso que o livro leva este nome na versão grega), e o relato das constantes rebeliões dos israelitas contra a autoridade de Moisés, de suas murmurações contra Deus e das punições aplicadas por Este como forma de inibir o espírito subversivo do povo.


Dentre as rebeliões mais contundentes, estão a que foi promovida por Corá e uma outra perpetrada por Arão e Miriã, ambas em momentos e situações diferentes, questionando a autoridade de Moisés, o que resultou em punições severas aos subversivos. No caso de Corá, a terra se abriu milagrosamente e o tragou juntamente com os seus parentes. No segundo caso, Miriã ficou repentinamente leprosa.

Em episódios menos notórios de desobediência, dois filhos de Arão foram consumidos pelo fogo de Deus, por terem apresentado um culto de forma indevida. Outros subversivos foram punidos com a peste, porque desejaram comer carne ao lembrarem as guloseimas do Egito. Em todas essas situações, o Senhor Deus se mostrou inclemente com os amotinados.

Escapuliu-me à compreensão o motivo por que o bondoso Deus de Abraão tratou com tanta severidade o seu povo. Em quase todas as páginas de Números, o que pude ver foram criaturas assustadas e revoltadas, sob um jugo insuportável, e um Deus irado, frustrado e profundamente entristecido por não conseguir a lealdade voluntária daqueles que eram objeto de seu incomensurável amor. 

A ideia de liberdade como algo inerente à natureza humana permeia toda a epopeia de Israel rumo à terra prometida e estende raízes retroativas até a época de escravidão no Egito. Pode parecer paradoxal capturar este conceito em páginas que registram uma história de cerca de 200 anos de escravidão, seguida por um regime draconiano no deserto, mas é evidente que, enquanto estiveram sob a escravidão de Faraó, os israelitas organizaram toda a sua vida ao redor do sonho de libertação e brigaram por isso. Moisés tornou-se a expressão maior deste desejo, quando se arremeteu contra um egípcio que maltratava seu irmão hebreu e o matou, o que culminou com a sua fuga para as terras de Midiã, onde passou quarenta anos e de onde voltou com ordens claras de Deus para ser o líder da libertação.

Liberto o povo do jugo egípcio, Moisés o guiou pelo deserto, rumo a Canaã, terra que Deus lhes havia prometido. Como uma forma de organizá-los numa nação diferenciada pela santidade, estabeleceu leis severas a fim de delinear o comportamento e a relação dos hebreus, tanto entre eles mesmos, como entre eles e Deus. O menor desrespeito era punido com a morte. Temos como exemplo que se um homem fosse pego apanhando cavacos no dia de sábado para acender o fogo e derreter a gordura do leite, seria inclementemente apedrejado por desrespeitar o quinto mandamento do decálogo.

Mas é importante notar, sem nenhum juízo de valor, que nem o fogo, nem os trovões, nem todas as ameaças da Divindade conseguiram arrefecer o anseio dos israelitas pelo direito de escolher qual rumo dar para a sua própria vida, o direito de se pronunciar, discordar e questionar tudo o que se lhes estava sendo apresentado como meio de se viver feliz. Neste embate, dá-se relevo a um Deus "angustiado", usando de meios que causam pavor ao olhar do leitor hodierno, valendo-se de um absolutismo insuportável, como também vemos homens obstinados na luta pelo direito de serem eles mesmos, digladiando-se com a Divindade.

Sartre escreveu que os homens estamos condenados à liberdade. Aliás, este é o pensamento central do Existencialismo. Apesar de saber que a frase do filósofo tem originalmente conotações diferentes da abordagem prática feita aqui, ela também me serve para expressar a verdade que me saltou das páginas do Pentateuco. Lá em Gênesis, um casal se rebela contra a vida regrada de um paraíso, para tristeza do coração da Divindade. Em êxodo, um povo decide não ser mais escravo e arrebenta as algemas, para tristeza do coração do Faraó. No deserto, durante quarenta anos, este mesmo povo se rebela contra Aquele que o libertou por entender que outra algema lhe fora posta.

Eu não entendo por que Deus insistiu tanto, já que Ele conhece melhor que ninguém a estrutura humana e sabe que ser livre é essência da própria natureza deles. Foi assim no decorrer de todo o Antigo Testamento. Assim tem sido no decorrer da história humana. Todos os que fizeram uso das algemas perderam a guerra, porque ser livre é o que constitui o humano, de sorte que nem mesmo a repressão em nome de Deus conseguiu abafar este grito de liberdade de um povo. Realmente, o filósofo tinha razão em todos os sentidos: “Estamos condenados à liberdade”, para o nosso bem ou para o nosso mal. Foi o que constatei neste dia.

Não estou fazendo juízo algum sobre os propósitos de Deus e as suas atitudes em relação ao seu povo. Na dúvida, perplexo diante de tanta brutalidade no Antigo Testamento, prefiro acreditar que o entendimento de Deus está muito elevado e que, por isso, há coisas que não entendemos. Apenas relato minhas impressões. E a impressão que tive é que Deus não venceu esta batalha, talvez a única que não ganhou, quando declarou guerra ao anseio humano de liberdade. A história de Israel no Antigo Testamento é a história de homens e mulheres rebelados contra um regime severo que se opunha à própria natureza deles.

Mas pulo para as páginas no Novo Testamento e vejo Deus dar uma cartada de Mestre. Ele parece mudar de estratégia, quando abandona o caminho do absolutismo severo e entrou pelas veredas do auto sacrifício. Foi bom que a Divindade tenha se humanizado na pessoa de Cristo e podido sentir as misérias humanas e as nossas dificuldades de submeter-nos a uma lei que somente a natureza divina pode cumprir. A encarnação foi um golpe de mestre porque, através do auto sacrifício, Deus atraiu a lealdade de uma multidão incontável de seguidores, os quais estavam e estão dispostos a darem sua vida por Ele. Quase dois mil anos se passaram e os seguidores de Cristo hoje são mais que em qualquer outro tempo. Eu acho que isso ensina alguma lição: o coração humano só se pode conquistar com empatia e auto sacrifício. Quando a empatia e o auto sacrifício são o cetro do governo, o povo deposita, espontaneamente, sua liberdade aos pés dele.


segunda-feira, 17 de maio de 2010

Pensar angustia, mas liberta.






O ORGULHO HUMANO

O ser humano é orgulhoso por natureza. Seu orgulho o levou a considerar-se superior a todas as outras criaturas terráqueas. Acha que é a coroa da criação, feito à imagem e semelhança de Deus, e que tem uma alma imortal. “A vida aqui é só o prelúdio da eternidade”, dizem alguns. “Não somos corpos vivendo uma experiência espiritual; somos espíritos, vivendo uma experiência corporal”, afirmam outros. E assim cada um pinta a existência humana com as cores que lhe parecem mais adequadas.

Talvez a forma mais comum de revelação do orgulho humano seja mesmo a fuga da realidade. O instinto de sobrevivência faz com que as pessoas vistam a vida com um otimismo que não tem conexão com o real. Como no filme “A vida é bela” em que o ator principal está com o infante filho no campo de concentração nazista e tenta enganar o menino fazendo-o acreditar que estão apenas jogando um jogo que resultará em um prêmio no final. A ideologia passada nesse filme é a mesma passada pelos pregadores excessivamente otimistas que anunciam que no final tudo dará certo.

O homem não aceita que ele é igual a qualquer outra criatura, pelo menos no que diz respeito ao processo natural das coisas: nascemos, sofremos e morremos. Não conseguimos aceitar que um dia nossas lutas resultarão em nada diante da inexorabilidade da correnteza que a tudo arrasta para a extinção. Não conseguimos aceitar que um dia seremos esquecidos de tudo e de todos.

A saída é negar, fugir, iludir-se, dizer que a vida é bela, que as lutas vêm para nos aperfeiçoar, que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. O pior é que, como dizia uma desprezível criatura, uma mentira repetida várias vezes acaba se transformando numa verdade.

Sartre defendeu na obra A Náusea que a existência humana é absurda. É absurda talvez porque o resultado de nossa luta é aquela coisa absurda, o fim inevitável de todos os homens. Hoje mesmo, enquanto cortava o cabelo no sindicato dos vigilantes, comentava com o cabeleireiro que, daqui a pouco tempo, será o meu filho que estará ali assentado – se ele quiser ser sócio do sindicato, é lógico - e, “sem dúvida, não será o senhor” – eu disse ao cabeleireiro – “que estará usando a tesoura”. Ele acenou com a cabeça e me olhou com tristeza, pois já estava no lado poente da vida.

Mas o danado é que a gente se apaixona cegamente por essas quimeras que a vida oferece, como um homem que se apaixona cegamente por uma mulher a ponto de não ver defeitos e negar todas as suas peripécias em nome da paixão frenética. Quando pergunta qual a razão dele estar com ela e amá-la tanto, ele responde: Não sei. Talvez a única razão seja ela.

Nelson Rodrigues tinha um personagem que amava excessivamente sua mulher. Um dia, ao ouvir o rumor de que estava sendo traído, disse-lhe: “Se um dia eu lhe flagrar na cama com outro homem, em pleno ato, por favor negue. Diga que não é verdade e eu acredito em você”. Assim somos nós, somos traídos todos os dias por essa mulher chamada vida, mas basta ela abrir um sorriso e nos convidar de volta a algum deleite, acabamos por acreditar nela. Será que em algum dia o ser humano terá humildade o bastante para aceitar nossa situação deplorável de ser humano? Ou seremos eternos iludidos, já que, como dizia uma professora minha, iludir-se é uma questão de sobrevivência.