segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Psicologia hospitalar - Relação com a hospitalização

Durante todo um ano letivo em que atuei como estagiário do curso de Psicologia no Hospital São Paulo, prestando atendimento psicológico a pacientes do setor de ortopedia, fui especialmente despertado pela curiosidade de analisar como se dá a relação dos pacientes com a hospitalização, dos elementos envolvidos nesta relação e de como essa relação depende não somente dos recursos da instituição hospitalar, mas também, e principalmente, do repertório de recursos que os pacientes trazem de suas próprias vivências, como visão de mundo, história de vida, estrutura familiar, religiosidade, etc., e como esse recursos ajudam ou prejudicam na relação com a hospitalização e interferem no enfrentamento da doença. O interesse em escrever sobre o assunto em apreço me surgiu a partir da percepção de diferenças gritantes que percebi entre as reações à doença e ao ambiente hospitalar de diversos pacientes que atendi, bem como nas implicações dessas reações na adesão ao tratamento e consequente recuperação.

A experiência com estes pacientes e as discussões sobre suas reações ao internamento com alguns profissionais da equipe interdisciplinar ampliaram a minha compreensão sobre a necessidade de olhar além do doente e do ambiente hospitalar para atingir a integralidade do indivíduo. Resolvi olhar o tema em apreço sob três perspectivas: 1) As implicações da doença e da hospitalização na vida do sujeito; 2) O repertório de recursos internos do doente como facilitador ou inibidor de sua relação com a hospitalização e enfrentamento da doença; 3) Estratégicas psicoterápicas.


1. As implicações da doença e da hospitalização na vida do sujeito

Primeiramente, deve-se considerar que o ambiente hospitalar é desconcertante e gerador de muita ansiedade, independente de qual seja a estrutura do indivíduo hospitalizado. Como observa Fighera e Viero (2005), a internação hospitalar pode contribuir para o sentimento de ruptura com a vida diária e como a perda da autonomia do paciente […], implicando numa série de sentimentos de desconforto e propiciando um processo de despersonalização. Há ansiedade pela incerteza, tanto relacionada à doença como ao desenrolar do tratamento, e pela sensação de solidão, impotência e desesperança, temor e auto-desvalorização. Feridas emocionais mal cicatrizadas podem se abrir e fantasmas persecutórios podem se agigantar, dificultando o engajamento no tratamento e o enfrentamento da situação.

Em segundo lugar, consideremos que a qualidade do atendimento hospitalar pode encorajar ou desencorajar a boa relação do paciente com a hospitalização, uma vez que cuidar do doente demanda trabalho diligente de uma equipe multidisciplinar, a fim de que o indivíduo tenha acolhimento integral nos aspectos médicos, subjetivos e sociais.

Para Silva, Garcia e Farias (1990), as dificuldades de adaptação [ao ambiente hospitalar] acontecem no momento em que o paciente não é atendido adequadamente em suas necessidades básicas, agravando com isso as sensações de isolamento e angústia pré-existentes. Portanto, nem sempre a relação ruim do paciente com a hospitalização deve-se à própria estrutura deste, mas pode ter origem na precariedade do serviço prestado.

Em terceiro lugar, não podemos desconsiderar que a qualidade e intensidade das reações dos indivíduos à hospitalização tendem a variar conforme as características das doenças e suas implicações psicológicas no comportamento do indivíduo. Há diagnósticos que são avassaladores e, portanto, lançam o indivíduo numa prostração total, podendo ativar mecanismos de defesa próprios da situação de luto e da natureza da enfermidade – entre esses mecanismos estão o de negação, que pode levar o paciente a negar a realidade da situação; minimização, que pode levar a reduzir a gravidade da doença; e pensamento mágico, que o faz acreditar que um ritual reverterá seu quadro – isso nos leva a ponderar que nem todo otimismo e engajamento correspondem à realidade, alguns têm origem patológica.

Sendo assim, um passo importante para se analisar a relação do paciente como a hospitalização e seu consequente engajamento no enfrentamento da doença consiste em lançar o olhar sobre aspectos objetivos da hospitalização e natureza da enfermidade, como os considerados acima.

2. O repertório de recursos internos como facilitador ou inibidor da relação paciente/hospitalização.

Fongaro e Sebastiani (2000), ao proporem um roteiro de avaliação psicológica aplicada ao hospital geral, abordam a importância do levantamento de dados sobre a estrutura psicodinâmica da personalidade da pessoa (tendências biófilas ou necrófilas), bem como de sua história de vida, considerando que o sujeito doente não se circunscreve a um diagnóstico, prognóstico ou técnicas de intervenção, mas sim de indivíduos doentes. Um olhar atento para historicidade deste indivíduo dará a perspectiva da relação ser-em-si e ser-no mundo, o que possibilitará a compreensão do conteúdo latente e manifesto das queixas do paciente.

A partir da perspectiva aclarada pelos autores supramencionados, durante os atendimentos ao pacientes do setor de ortopedia, permiti-me lançar o olhar para além do doente, da hospitalização, dos sintomas e natureza da doença, para alcançar o indivíduo contextualizado e então compreender a dinâmica singular do paciente na relação com a hospitalização. Notei em dois pacientes que atendi uma bagagem de recursos internos que trouxeram para a internação que se somaram aos recursos do hospital; esses pacientes se agigantavam diante da situação (um fala da religiosidade e estrutura familiar, outro se vale do vasto conhecimento, de sonhos ainda não realizados, etc.) e demonstravam ótima relação com a hospitalização, que se traduzia no bom convívio tanto com os colegas de quarto, como com a equipe multidisciplinar de saúde.

Em contrapartida, atendi três pacientes que apresentavam uma pobreza muito grande de recursos internos, com discurso muito objetivante e um sistema imunológico prejudicado por profundas feridas emocionais, o que os lançava numa vala de desmotivação, dependentes dos recursos hospitalares somente. A relação com a hospitalização era precária, aliás, havia recomendação da equipe médica para que se prestasse atendimento psicológico especial àqueles pacientes. Lancei-me numa verdadeira caminhada com esses pacientes por entre suas vivências para tentar descobrir a razão da dificuldade de relacionamento na situação hospitalar e de adesão ao tratamento, e descobri uma paisagem nada motivadora de famílias desbaratadas, relacionamentos pessoais ruins, características anti-sociais, descrença na vida e ausência de espiritualidade.

3. Estratégia psicoterápica

A partir da experiência acima referida, comecei a aquilatar o real valor do psicólogo no contexto hospitalar, assinalando que ao psicoterapeuta cabe resgatar a integralidade do indivíduo, perdida no recorte de sua condição de doente hospitalizado, que tende a reduzi-lo a mero conjunto de sintomas, reaver a historicidade de suas vivências, distinguir e avaliar os pontos positivos e negativos que possam influenciar na relação com a hospitalização e na consequente adesão ao tratamento, bem como fortalecer aspectos positivos, levando o paciente a ressignificar suas vivências de maneira que favoreça o enfrentamento da situação e o torne corresponsável no processo de restauração de sua saúde.

Conclusão

Um dia, um médico, ao comentar sobre uma paciente, exclamou: “É impressionante a força e entusiamo que ela tem ante as adversidades, o que ajuda muito no combate à doença”. Passei a pensar nessa afirmação em cada atendimento que fazia. Os recursos internos dos pacientes são, de fato, um forte aliado dos recursos hospitalares no combate à doença.  Feitas essas considerações, podemos discorrer sobre a importância da boa relação com a hospitalização no enfrentamento da doença e da consequente recuperação, bem como sobre o quanto o repertório interno que o indivíduo traz de fora do hospital, o que abrange sua maneira de significar o mundo e as suas vivências, pode ser um poderoso aliado ou inibidor dos recursos hospitalares no enfrentamento da doença, o que pressupõe que o tratamento do doente, além da objetividade dos recursos tecnicos-medicinais, envolve repertório muito grande de recursos subjetivos.

Bibliografia

♦Fongaro e Sebastiani, RW. Roteiro de Avaliação Psicológica Aplicado ao Hospital Geral . In: ANGERAMI, Camon (org). E a Psicologia Entrou no Hospital. São Paulo: Pioneira, 2000.

♦FIGHERA, Jossiele; VIERO, Eliani Venturini. Vivências do paciente com relação ao procedimento cirúrgico: fantasias e sentimentos mais presentes. Rev. SBPH, Rio de Janeiro, v 8, n. 2, Dec 2005.

♦Silva, M.L.; Garcia, E. & Farias, F. (1990). A Doença - Aspectos Psicossociais e Culturais - Manifestações e Significados Para a Equipe de Saúde. Revista Enfoque, 18 (2), 31-33.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

VELHA CHÁCARA

 


Manuel Bandeira


A casa era por aqui...

Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinqüenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida... nos desenganos...)

A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...
Mas o menino ainda existe.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Josué, Um Exemplo de Perseverança (parte 2)

A IMPORTÂNCIA DO TEMOR AO SENHOR

Temer ao Senhor significa guardar os seus mandamentos e aceitar a sua orientação em todas as esferas da vida (ver Ec 12.13; 1 Sm 12.14); significa reconhecer a sua soberania e onipotência sobre tudo o que existe (ver Lv 25.17). Quando recusamos temer ao Senhor e aceitar a sua direção, o que acontece? Primeiro, sofremos as conseqüências naturais de nossas escolhas (ver Pv 1.31). Segundo: saímos de baixo da proteção de Deus. Neste caso, Ele pode muito bem não fazer coisa alguma para intervir em nossa ajuda (ver Pv 1.28).

Josué já tinha vivenciado muitas vezes as consequências da falta de temor a Deus. Muitas vezes o povo de Israel, sob o comando de Moisés e do próprio Josué, tiveram derrotas vergonhosas porque deixaram o temor do Senhor. Acredito que ainda soava nos ouvidos de Josué as palavras de Deus, dirigidas aos israelitas quando eles estavam a um passo de se apossarem da terra prometida: "Agora, pois, ó Israel, que é que o SENHOR requer de ti? Não é que temas o SENHOR, teu Deus, e andes em todos os seus caminhos, e o ames, e sirvas ao SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração e de toda a tua alma? Ao SENHOR, teu Deus, temerás; a ele servirás, a ele te chegarás e, pelo seu nome, jurarás. Ele é o teu louvor e o teu Deus, que te fez estas grandes e temíveis coisas que os teus olhos têm visto" (Dt 10:12, 20-21). Aliás, foi este o segredo de Moisés, pelo qual se tornou um dos maiores homens da humanidade. Foi também o segredo de Josué durante toda a sua vida. A nova geração não teria que inovar nada, apenas devia continuar usando a velha receita: o temor do Senhor. A Bíblia mostra que o temor a Deus é porta aberta para as suas inestimáveis bênçãos, enquanto que a falta de temor é uma porta aberta para derrotas vergonhosas (Js 7.1, 5-7, 12). Quem teme ao Senhor é bem-sucedido (1 Sm 12.14), tem orientação segura (Sl 25.12), habitará na sombra da bondade e misericórdia divinas (Sl 103.13; Pv 1.7; Lc 1.50), é agradável a Deus (At 10.35).

EXORTAÇÕES À PERSEVERANÇA

E guarda a observância do Senhor, teu Deus, para andares nos seus caminhos e para guardares os seus estatutos, e os seus mandamentos, e os seus juízos, e os seus testemunhos, como está escrito na lei de Moisés, para que prosperes em tudo quanto fizeres, para onde quer que te voltares.*

Guardar tudo quanto está escrito. O que Josué estava anunciando não era nada de novo. Israel havia vencido, milagrosamente, grandes batalhas, subordinado sempre à vontade de Deus, ou seja, guardando diligentemente os mandamentos que o Senhor ordenou para que observassem. Se quisessem continuar triunfando diante de seus inimigos ou de qualquer adversidade, a condição era a mesma: “Esforçai-vos, pois, para guardardes e para fazerdes tudo quanto está escrito no livro da Lei de Moisés” (Js 23.6). Neste caso, é muito pertinente o comentário do pastor Elienai Cabral.

As Escrituras representavam a vida e a morte para Israel, por isso, os escritos de Moisés eram considerados sagrados e deviam ser preservados. Guardar a Palavra de Deus significa tê-la no coração como regra de fé e conduta (Sl 119.11). Não somente guardar a palavra escrita no coração, isto é, na mente, mas fazer aquilo que a Escritura ordena que se faça. Não basta ter fé em Deus e na sua Palavra. É preciso cumprir o que está escrito. Fé e obras são inseparáveis (Tg 2.14-26). O Cristianismo genuíno não é um amontoado de regras prescritas que não sirvam para conduzir as pessoas à felicidade que, por sua vez, só é verdadeiramente alcançada quando agradamos a Deus (CABRAL, 2009).

No capítulo 28 de Deuteronômio, vemos, de forma clara, a relação direta entre a obediência à lei e o recebimento de todas as bênçãos divinas, relação que serve para os crentes de todos os tempos. Note que o texto abaixo (1-14) começa e termina com a oração condicional “se ouvirdes a voz do Senhor teu Deus”.

E SERÁ que, se ouvires a voz do SENHOR teu Deus, tendo cuidado de guardar todos os seus mandamentos que eu hoje te ordeno, o SENHOR teu Deus te exaltará sobre todas as nações da terra. Deuteronômio 28:E todas estas bênçãos virão sobre ti e te alcançarão, quando ouvires a voz do SENHOR teu Deus; Deuteronômio 28:Bendito serás na cidade, e bendito serás no campo. Deuteronômio 28:Bendito o fruto do teu ventre, e o fruto da tua terra, e o fruto dos teus animais; e as crias das tuas vacas e das tuas ovelhas. Deuteronômio 28:Bendito o teu cesto e a tua amassadeira. Deuteronômio 28:Bendito serás ao entrares, e bendito serás ao saíres. Deuteronômio 28:O SENHOR entregará, feridos diante de ti, os teus inimigos, que se levantarem contra ti; por um caminho sairão contra ti, mas por sete caminhos fugirão da tua presença. Deuteronômio 28:O SENHOR mandará que a bênção esteja contigo nos teus celeiros, e em tudo o que puseres a tua mão; e te abençoará na terra que te der o SENHOR teu Deus. Deuteronômio 28:O SENHOR te confirmará para si como povo santo, como te tem jurado, quando guardares os mandamentos do SENHOR teu Deus, e andares nos seus caminhos. Deuteronômio 28:E todos os povos da terra verão que é invocado sobre ti o nome do SENHOR, e terão temor de ti. Deuteronômio 28:E o SENHOR te dará abundância de bens no fruto do teu ventre, e no fruto dos teus animais, e no fruto do teu solo, sobre a terra que o SENHOR jurou a teus pais te dar. Deuteronômio 28:O SENHOR te abrirá o seu bom tesouro, o céu, para dar chuva à tua terra no seu tempo, e para abençoar toda a obra das tuas mãos; e emprestarás a muitas nações, porém tu não tomarás emprestado.

Deuteronômio 28:E o SENHOR te porá por cabeça, e não por cauda; e só estarás em cima, e não debaixo, se obedeceres aos mandamentos do SENHOR teu Deus, que hoje te ordeno, para os guardar e cumprir. Deuteronômio 28:E não te desviarás de todas as palavras que hoje te ordeno, nem para a direita nem para a esquerda, andando após outros deuses, para os servires.

No capítulo 7 de Mateus, Jesus faz uma ilustração magistral, comparando aqueles que guardam os mandamentos do Senhor ao homem sensato que edificou sua casa sobre a rocha, de sorte que nem a chuva, nem os rios, nem a impetuosidade do vento conseguiram abater aquela casa. O Mestre apenas confirma tudo o que já fora dito: que a obediência à Palavra de Deus é, em todos os tempos, a porta aberta para doa a sorte de bênçãos.

2. Guardar-se da idolatria e de qualquer mistura com povos pagãos. “Não vos mistureis com estas nações que ainda restam no vosso meio; não fareis menção dos nomes de seus deuses, não os invocareis nos vossos juramentos, não os servireis, nem a eles vos inclinareis” (Js 23.7). Israel fora escolhido para ser nação peculiar de Deus (Dt 7.6), com a incumbência de anunciar a santidade e o poder de Iavé entre as nações (Dt 28.10). Para isso teria que ser diferente de todas (Dt 7.3). Enquanto todas as nações da época viviam na prática do monoteísmo, em um aberrante sincretismo religioso, Israel fora chamado para servir apenas ao único e verdadeiro Deus (Dt 5.7,8; 6.4). Uma aproximação entre os filhos de Abraão e os cananeus seria desastrosa para Israel, posto que serviria de laço para a idolatria. Por isso a preocupação do senhor, desde a saída do Egito, para que a nação santa não se misturasse nem fizesse concerto com povos pagãos (Dt 7.1-5). Como, infelizmente, algumas nações de Canaã não foram exterminadas pelos israelitas e teriam, por conseguinte, que dividir com eles aquela terra, o risco de que Israel se misturasse era muito grande. Josué indica, pois, dois passos que deveriam ser evitados pelos filhos de Israel, sob pena de afastar a bondade e proteção de Deus, conforme comentário abaixo.

No versículo 7 ele indica especificamente dois passos para longe de Deus, que devem ser evitados. Eram eles: (1) misturar-se com povos rebeldes e (2) dar atenção aos seus deuses (cf Ê 23.13; Dt 10.20). Tiago expressa esse perigo na forma de uma pergunta: “Não sabeis vós que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? (Tg 4.4). Os israelitas tinham a responsabilidade de fazer com que outros povos conhecessem o Deus vivo e essa missão não poderia ser levada a cabo com comprometimentos estranhos (Comentário Bíblico Beacon, volume 2, CPAD, p. 75. In Revista Ensinador Cristão, nº 37, CPAD, p. 42).

Paulo adverte a igreja de Corinto a que não se prendesse a um jugo desigual (2 Co 6.14-17), e o apóstolo João, na sua primeira epístola universal, adverte-nos: “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos” (5.21).

3. Os resultados deletérios da desobediência. “Quando traspassardes o concerto do Senhor, vosso Deus, que vos tem ordenado, e fordes, e servirdes a outros deuses, e a eles vos inclinardes, então a ira do Senhor sobre vós se acenderá, e logo perecereis de sobre a boa terra que vos deu” (Js 23.16). Ora, se a condição para a vitória era a obediência ao mandamento do Senhor, o oposto também era verdadeiro: a desobediência redundaria em fracassos e grandes desgraças. Josué ainda trazia na memória o resultado desastroso da desobediência de Acã (Js 7), ou, antes, da desobediência de Arão no deserto (Ex 32). No mesmo capítulo 28 de Deuteronômio (vv 15-68), estão listadas as maldições proferidas contra a nação de Israel, caso ela fosse desobediente aos mandamentos do Senhor. Note que o texto bíblico começa mais uma vez com a oração condicional “se não deres ouvido a voz do Senhor teu Deus”.

Será, porém, que, se não deres ouvidos à voz do SENHOR teu Deus, para não cuidares em cumprir todos os seus mandamentos e os seus estatutos, que hoje te ordeno, então virão sobre ti todas estas maldições, e te alcançarão: Deuteronômio Maldito serás tu na cidade, e maldito serás no campo.Deuteronômio 2 Maldito o teu cesto e a tua amassadeira. Deuteronômio 2 Maldito o fruto do teu ventre, e o fruto da tua terra, e as crias das tuas vacas, e das tuas ovelhas.Deuteronômio 2 Maldito serás ao entrares, e maldito serás ao saíres. Deuteronômio 28 O SENHOR mandará sobre ti a maldição; a confusão e a derrota em tudo em que puseres a mão para fazer; até que sejas destruído, e até que repentinamente pereças, por causa da maldade das tuas obras, pelas quais me deixaste.Deuteronômio 28 O SENHOR fará pegar em ti a pestilência, até que te consuma da terra a que passas a possuir. Deuteronômio 28

De volta ao capítulo 7 de Mateus, vemos Jesus mostrar o outro lado da moeda: a insegurança e os prejuízos daqueles que não obedecem a Palavra de Deus. O Mestre os compara ao homem insensato que edificou sua casa sobre areia. Vindo a chuva, correndo os rios e soprando o vento, aquela casa não resistiu, e grande foi a sua ruína. O Senhor cuidou apenas de ratificar o que já fora dito: a desobediência aos mandamentos do Senhor é, em todos os tempos e lugares, uma porta aberta para todos os tipos de males.

3. Guardar a alma para amar ao Senhor. “Portanto, guardai muito a vossa alma, para amardes ao Senhor, vosso Deus” (Js 23.11). “Amar a Deus” era o primeiro e grande mandamento da lei (Dt 6.6; Mt 22.37-40). A Bíblia Sagrada está repleta da advertência “Amai ao Senhor”. Josué acrescenta que este amor deve ser com a alma guardada. Uma expressão equivalente seria “amar a Deus de toda a alma” (Dt 6.5). O comentário do pastor Elienai Cabral, exposto abaixo está riquíssimo.

A alma é a sede das emoções, dos sentimentos. Podemos dizer que é o centro da personalidade humana. Ela representa a nossa vida pessoal, moral e espiritual. Guardar a alma significa protegê-la de toda forma de corrupção que pode torná-la doente. Como podemos guardar a alma de modo que permaneça sempre saudável? Não há outra maneira senão através da leitura diária da Palavra de Deus, da oração e sendo cheio do Espírito Santo (Sl 119.97; Ef 6.18; 1 Pe 1.22). (Lições bíblica CPAD, 1º trimestre 2009, p.88).

Josué relacionou a alma ao ato de amar, porque, como nós sabemos hoje, ele já sabia que a ação de amar brota diretamente do âmago da alma de cada pessoa. Todo crente que ama a Deus de verdade guarda a sua alma dos corruptores morais que podem torná-la enferma. Ainda o pastor Elienai Cabral:

O apóstolo Pedro escreveu que as concupiscências da carne combatem contra a alma. Essas concupiscências são aqueles desejos incontinentes que procuram destruir a nossa alma (1 Pe 2.11). Amar a Deus com toda a força da alma (Mt 22.37) é colocá-lo acima de tudo em nossa vida (CABRAL, Elienai. Josué, um líder que fez a diferença. Rio de Janeiro: CPAD, 2008, p. 130)


JOSUÉ, UM INSTRUMENTO NAS MÃOS DE DEUS

Por favor, não me idealize nem me sentimentalize. Se realizei alguma coisa digna de admiração, foi por causa da grandeza de Deus. Ele tomou uma pessoa comum e fez coisas extraordinárias.*


A frase acima poderia ser dita por Josué em seu discurso de despedida. Ele foi realmente usado de forma poderosa por Iavé. Aliás, Deus sempre usou homens como instrumentos de suas mãos para executar seus desígnios. A Bíblia está repleta de casos de pessoas que foram chamadas, afinadas e usadas poderosamente. Ele chamou José da terra de Canaã e o afinou, a fim de usá-lo na preservação dos filhos de Israel em um período de grande fome (Gn 37; 39-47); chamou Moisés do palácio de Faraó, e o afinou no deserto durante quarenta anos, e o usou como instrumento para libertar os filhos de Israel da escravidão egípcia (Ex 2-12). Morto Moisés, o Senhor levantou Josué, o qual se tornaria um dos maiores líderes do povo de Deus de todos os tempos. Além de ser um excelente estrategista de guerra, Josué incentivou o povo, durante toda a vida, a amar e a servir ao Senhor. Nos seus dias, Israel enfrentou batalhas não só de ordem corporal com seus inimigos, mas também de ordem cultural e religiosa. O povo santo estava vivendo cercado por povos pagãos e idólatras, de costumes totalmente diferentes, porém mesmo assim, nos dias de Josué, o povo permaneceu servindo ao Senhor. Podemos dizer que Josué foi uma pessoa comum que foi usada para fazer coisas extraordinárias, como no comentário do escritor Lloyd Ogilvie:

Uma pessoa comum que faz coisas extraordinárias!. Pode-se dizer o mesmo de todos os heróis da fé. É tão confortante como desafiador descobri as pessoas comuns atrás das realizações extraordinárias. Somos confortados ao descobrirmos que essas pessoas enfrentaram as mesmas lutas e imperfeições que todos nós enfrentamos. Mas, também somos desafiados a perceber que a causa de sua grandeza é o que Deus realizou nelas e através delas. Não poderia Deus fazer o mesmo conosco se estivéssemos dispostos?

CONCLUSÃO

Lembro-me de um querido irmão que, quando interrogado por alguém sobre qual teria sido o grande feito de sua vida, ele respondeu com gratidão: o meu grande feito foi ter aprendido a confiar em Deus. E foi o que Josué, o líder, agora encanecido, logrou com todos os anos de batalha à frente do povo de Israel. Tanto é que o seu discurso final, orientado a incentivar à nova geração de israelitas, atesta o fato de que Ele amou a Deus, guardou os seus mandamentos e venceu. Necessariamente nesta ordem.

Josué, Um Exemplo de Perseverança (parte 1)

Passados muitos dias, tendo o Senhor dado repouso a Israel de todos os seus inimigos em redor, e sendo Josué já velho, de idade muito avançada, chamou Josué a todo o Israel, aos seus anciãos, aos seus cabeças, aos seus juízes e aos seus oficiais, e disse-lhes: Eu já sou velho, de idade muito avançada; e vós tendes visto tudo quanto o Senhor vosso Deus fez a todas estas nações por causa e vós, porque é o Senhor vosso Deus que tem pelejado por vós.  Esforçai-vos, pois, para guardar e cumprir tudo quanto está escrito no livro da lei de Moisés, para que dela não vos desvieis nem para a direita nem para a esquerda (Js 23.1-3,6).  


INTRODUÇÃO

Ultimamente tenho meditado no livro bíblico de Josué. Fortes emoções me assaltam na mediada em que me debruço sobre cada página da história de um dos maiores líderes de Israel, responsável por conduzir a nação hebréia à conquista da terra prometida. Emocionou-me ver como Deus o escolheu para suceder a Moisés, dada a sua fidelidade, obediência e caráter ilibado. Tenho vivenciado sua coragem e determinação como se fossem minha própria coragem e determinação, vivido sua fé como se fosse a minha própria fé, e me empolgado com suas estratégias e vitórias espetaculares como se fosse um coadjuvante seu nas batalhas. E até me indignei ao ler sobre os seus erros como se tivesse sido também afetado pelas consequências deles. Mas agora chego ao capítulo 23, que considero a parte mais importante da biografia desse grande homem, inspiradora de emoções ainda maiores. Melhor parte porque mais importante que começar bem é terminar bem. E o grande líder de Israel terminou bem. Tão bem que, agora, avançado em idade, num discurso de despedida, vai dar a receita que usou para superar os desafios de sua missão. É uma prescrição que serve para os crentes de todos os tempos. Convido o leitor para que nos deleitemos com essa tremenda lição extraída das Páginas Sagradas.


A. RECOMENDAÇÕES FINAIS DE UM HOMEM DE DEUS

Afinal, de que homens idosos lembram? Quando homens idosos sentam na sua varanda e refletem sobre sua vida que passou rapidamente, quais são os marcos que se destacam na memória dos anos passados? Quais são os eventos que realçam a neblina do tempo confuso? *
1. O povo é convocado para uma reflexão. Muitos anos haviam-se passado desde que o Senhor deu vitória a Israel e o fez repousar na terra dos seus inimigos. Josué contava aproximadamente 1110 anos de idade. As forças já se esgotaram no transcorrer dos anos. Ele percebe que está próximo da morte. O que poderia fazer pelo povo agora, ele que tanto já fizera por Israel? O grande líder está cônscio de sua responsabilidade com a nova geração de israelitas. Muitos daqueles filhos de Abraão não tinham vivenciado os grandes momentos da história de Israel no pós-Jordão, dos feitos extraordinários do Senhor em prol de seus pais. Porém Josué tinha lembranças que ultrapassava o Jordão e ia até ao Egito. Os tempos de escravidão, a libertação operada por Deus através de Moisés, a travessia do mar vermelho e a trajetória no deserto por quarenta anos permeada por extraordinárias intervenções do Senhor. Acredito que o momento que mais o marcou foi a despedida de Moisés, seu líder. Como podia esquecer o momento em que o grande legislador do Êxodo lhe transfere a responsabilidade de guiar o povo. E Moisés o fez convocando os israelitas para dar-lhes orientações finais, palavras de instruções e advertência (Dt 32). Josué, pois, não podia fazer diferente. Convoca o povo para ministrar-lhe uma mensagem final de advertência e encorajamento. Mas como elaborar um sermão para um momento tão célebre? Entendeu que precisava de um sermão que mirasse as próximas gerações. Foi então que ele esboçou assim o seu sermão:

1.1 O que o Senhor fez. 
“E vós já tendes visto tudo quanto o Senhor, vosso Deus, fez a todas estas nações por causa de vós, porque o Senhor, vosso Deus, é o que peleja por vós” (Js 23).
Josué desafia a nova geração a lembrar a bondade de Deus, sua misericórdia e cuidado para com Israel. Moisés fizera o mesmo antes de sua morte. Note como Josué atribui a causa de todas as vitórias de Israel ao Senhor, nada aos seus dotes e estratégias.

Aprendemos aqui lições preciosas. Primeiro, vemos que um povo que se preza não deve nunca desprezar o seu passado, porque isso equivaleria esquecer seus princípios e tradições, desprezar seus heróis e ser ingrato com seus predecessores. Além de que, um olhar para o passado nos trás lições preciosas de como devemos proceder no presente . Como lembra Alexandre Coelho:  "É importante observar que não se pode desprezar o passado, pois ele dá informações preciosas de como devemos ou não proceder em relação às questões da vida". O mesmo escritor observa que na afirmação "o Senhor pelejou por vós” (Js 23.3)*, residia a evidência da história, alertando que Deus os levara até ali e, portanto, os israelitas não poderiam dominar a terra sem a ajuda de Deus.

1.2 O que o Senhor fará.

“Vede aqui que vos fiz cair em sorte às vossas tribos estas nações que ficam desde o Jordão, com todas as nações que tenho destruído até ao mar grande para o pôr do sol. E o Senhor, vosso Deus, as impelirá de diante de vós; e as expelirá de diante de vós; e vós possuireis a terra, como o Senhor, vosso Deus, vos tem dito” (Js 23.4,5).

1.3 O que o Senhor exige. Aqui, Josué desafia o povo a uma obediência constante.
“Esforçai-vos, pois, muito para guardardes e para fazerdes tudo quanto está escrito na lei de Moisés, para que dela não vos aparteis, nem para a direita nem para a esquerda” (Js 23.6).
Anos atrás, Josué tinha ouvido, do próprio Deus, um desafio do mesmo teor (ver Js 1.7,8). Caso eles servissem com diligência ao Senhor, tendo o cuidado de guardar toda a sua lei, eles continuariam sendo vitoriosos contra as nações que ainda restavam em Canaã: “Um só homem dentre vós perseguirá a mil, pois é o mesmo Senhor, vosso Deus, que pelejará por vós, como já vos tenho dito” (Js 23.10).


CONCLUSÃO

Lembro-me de um querido irmão que, quando interrogado por alguém sobre qual teria sido o grande feito de sua vida, ele respondeu com gratidão: o meu grande feito foi ter aprendido a confiar em Deus. E foi o que Josué, o líder, agora encanecido, logrou com todos os anos de batalha à frente do povo de Israel. Tanto é que o seu discurso final, orientado a incentivar à nova geração de israelitas, atesta o fato de que Ele amou a Deus, guardou os seus mandamentos e venceu. Necessariamente nesta ordem.


NOTAS

* Veber, Stu. Um abraço amigo. São Paulo: Quadrangular, 1995, p. 16.
 **COELHO, Alexandre. Subsídios para Livro de Josué. Ensinador Cristão. Rio de janeiro: CPAD, ano 16,  n. 37, p. 42.
 *** OGILVIE, Lloyd John. O senhor do impossível. São Paulo: Vida, 1984, p. 105.

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quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O que realmente importa


Rascunho de uma reflexão sobre a vida

Durante algum tempo prestando atendimento psicológico a pacientes de um grande hospital de São Paulo, o fenômeno que mais me chamou a atenção foi a frequência com que alguns assuntos apareciam na fala dos pacientes, dos quais destacaram-se os seguintes: família, lugar de origem e religiosidade. Normalmente deixávamos aquelas pessoas livres para falar do que desejassem e, entre um assunto e outro, elas acabavam resvalando para os temas acima referidos. Ainda que tentássemos focar outros assuntos, como trabalho, dinheiro, moda, etc, sempre falávamos à sombra de família, religião e origem.

Não era a simples citação desses temas pelos pacientes que me chamava a atenção, afinal de contas as pessoas, no dia- a-dia, fazem referência à família, à religiosidade e às suas origens, porém naqueles pacientes, limitados a um leito hospitalar, a fala se apresentava carregada de muita emoção, de significados bem definidos, denotando reflexões profundas sobre os assuntos que abordavam. Alguns deles, por exemplo, falavam da esposa e dos filhos como se houvessem descoberto, somente ali no hospital, um grande segredo: o de que a esposa e os filhos eram tudo o que tinham de mais importante na vida. Outros aludiam à terra de origem e citava os pais, irmãos e amigos distantes, numa fala tão carregada de nostalgia e emoção que pareciam nunca antes, fora do hospital, terem se apercebido da importância de suas raízes. Em referência à religiosidade, expressada na figura de Deus, não era diferente: pareceu-me que o momento de angústia aflora a fé, confere-lhe vida e cores tão fortes, diferente da maneira como ela é banalizada no cotidiano da vida das pessoas.

Enquanto atendia meus pacientes e ouvia cuidadosamente a fala deles, a hipótese que me campeava a cabeça era que a diferença que caracterizava suas palavras achava-se no campo da reflexão, instaurado pelas particularidades do ambiente hospitalar. Os indivíduos que atendi não passavam pelas coisas simplesmente, eles detinham e pensavam sobre as coisas.

Segundo a leitura fenomenológica de homem, na maioria das vezes somos impróprios e passamos pela vida de forma apressada, o que nos impossibilita de estar com as coisas e se apropriar delas. Fazemos uso das coisas  e nos relacionamos com muita gente, porém raramente refletimos sobre a importância  das pessoas e objetos de nossos relacionamentos. "Estar com" é "refletir sobre", apropriar-se (Forghieri, 2006).* À maneira normalmente irrefletida de vivenciar o mundo, Forghieri (2006) se refere como vivência imediata, enquanto que o jeito reflexivo de lançar o olhar sobre o mundo em nossa volta, a mesma autora chama de vivência racional, e afirma que o existir humano está sempre cheio de possibilidades e limites, ora pré-reflexiva ora racionalmente.

O que possibilita ao homem lançar o olhar de reflexão sobre o seu mundo circundante é a angústia (a angústia da falta, da perda, do vazio). Podemos ilustrar da seguinte maneira: o indivíduo entrou em casa e não olhou para a lâmpada acesa no teto, muito menos se deu conta da importância dela, o que só conseguiu fazer quando acabou de repente a luz elétrica. A escuridão da noite, que o impossibilitou de executar tantas tarefas importantes, o desconcertou, lançando-o num mal-estar existencial que o remeteu para a reflexão e, portanto, o fez apropriar-se da importância da lâmpada acesa. É a partir dessa leitura que compreendemos que, no geral, as pessoas vivem no automático (na inautenticidade), sem refletirem sobre a real importância dos bens disponíveis. Somente um rompimento brusco pode tirá-las do automático e desnudar a vida, com todas as suas nuances, submetida-a à reflexão (Forghieri, 2006).

Acidentes de percursos na vida de uma pessoa, como os casos que atendi no hospital (acidentes, atropelamento, diagnóstico de uma enfermidade, etc.) acabam por tirar o indivíduo de suas atividades rotineiras, principalmente o trabalho, lançando-o em um ambiente físico e psicológico que possibilita sérias reflexões sobre a vida e aquilo que realmente é importante para ele.  É quando se sobressaem as grandes questões da existência, que geralmente são sopitadas pelas ocupações próprias da sociedade contemporânea, e começam a aflorar os tesouros inestimáveis que estavam ali, bem perto de nós, o tempo todo, mas não demos conta do seu real valor. Mas agora, na propiciabilidade do ambiente hospitalar, a mente retoma, reavalia, ressignifica e atribui valores justos a quem é de direito. Por isso, o desejo daqueles pacientes de falar sobre a família, amigos, origens, religião ou... do que realmente importa.

*FORGHIERI, Y. C. Aconselhamento terapêutico, origens, fundamento e prática. São Paulo: Thomso Learning, 2006.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

NEEMIAS LIDERA UM GENUÍNO AVIVAMENTO


“E Esdras, o sacerdote, trouxe a Lei perante a congregação […] e leu nela […] desde a alva até ao meio-dia, perante homens, mulheres e sábios; e os ouvidos de todo o povo estavam atentos ao livro da Lei” (Neemias 8.2,3).

INTRODUÇÃO

Depois de restaurados os muros de Jerusalém, o que representava o real ressurgimento da nação judaica, fazia-se premente a necessidade de uma restauração espiritual. Esdras, sacerdote e escriba, líder espiritual de Judá, juntou-se a Neemias, líder político da recém-restaurada nação, para promover uma restauração de cunho espiritual mediante o ensino sistemático da Palavra de Deus. Por 7 dias seguidos, de manhã cedo até ao meio-dia, Esdras e professores auxiliares ensinaram o Livro da Lei à vista de todo o povo, explicando minunciosamente o significado das Letras Sagradas (Ne 8. 18). O resultado foi um grande avivamento com arrependimento, confissões de pecados e a firme decisão de obedecer à Palavra de Deus. Esse fato, objeto de nosso estudo, vem esclarecer que um genuíno avivamento só é possível mediante o estudo, entendimento e prática da Palavra de Deus.


I. O POVO FORA TOMADO POR UM DESEJO ARDENTE DE OUVIR A ESCRITURA

1. Reunidos para ouvir a Lei

Então todo o povo se ajuntou como um só homem, na praça diante da porta das águas; e disseram a Esdras, o escriba, que trouxesse o livro da lei de Moisés, que o Senhor tinha ordenado a Israel (Ne 8.1).

A disposição do povo para receber o ensinamento da Lei se justifica em três premissas: Primeiramente devemos considerar que, depois de tanto tempo cativos em Babilônia, longe do Templo, do culto e dos oráculos divinos, desprovidos do ministério de ensino que caracterizara a situação pré-exílica, os filhos de Abraão, ante o privilégio de participar deste seminário ministrado por Esdras, foram tomados por grande curiosidade: estavam como o estudante que volta depois de tantos anos, à escola, tudo era novidade. Em segundo lugar, consideremos que foram instigados pelo zelo da dupla Esdras/Neemias, cujo exemplo era como sal a provocar sede pelo retorno a Deus. Em terceiro, consideremos que um avivamento nunca acontece pela iniciativa humana, antes tem o ponto de partida em Deus. Acreditamos que o Espírito do Senhor inundou os corações de desejo pela Santa Palavra. Vejamos o que caracterizou as reuniões de culto.

a) Povo unânime (v. 1). Todos - homens, mulheres, crianças, sábios e indoutos - como um só homem, estavam ávidos por ouvir a Lei. Este desejo coletivo é sempre o resultado da ação do Espírito Santo. O avivamento não veio como resultado daquela escola bíblica, mas aquela escola foi possível devido o avivamento que Deus já havia enviado ao despertar os corações para a sede pela Palavra. Foi assim que aconteceu no grande avivamento de Jerusalém, quando os discípulos de Jesus também estavam unânimes, esperando a promessa de efusão do Espírito Santo ( At 1.14).

b) Povo sedento de Deus. “[...] e disseram a Esdras, o escriba, que trouxesse o livro da lei de Moisés, que o Senhor tinha ordenado a Israel” (v. 1). O povo pedia a Bíblia como sedentos que imploram por água. Mais de seis horas diárias, permaneciam ali, atentos a cada palavra. Não se tratava de uma imposição para que os fiéis ficassem horas a fio ouvindo sermões cansativos, recheados de jargões, em que o pregador usa de vários meios para prender o povo; era o povo que desejava ouvir, e o pregador estava ali para satisfazer essa necessidade. Às vezes, gastam-se tantos esforços na tentativa de salvar o povo, trazê-lo para o ministério da oração e cooperação no Reino de Deus e os resultados são pífios. Não podemos perder de vista que a motivação para a entrega na oração, no estudo da Palavra e no serviço vem do céu, não é resultado de técnicas e recursos humanos. No entanto vale salientar que Deus sempre instrumentaliza pessoas para enviar um avivamento ao seu povo, como fez usando Neemias e Esdras.

2. O povo estava atento à leitura da Lei

E leu nela diante da praça que está fronteira à porta das águas, desde a alva até o meio-dia, na presença dos homens e das mulheres, e dos que podiam entender; e os ouvidos de todo o povo estavam atentos ao livro da lei.

Já se foi dito que o bom ouvinte é aquele que, além de ouvir calado, demonstra interesse no que está sendo falado. Aquela plateia era de bons ouvintes. “Ouvidos atentos” significa ouvir com interesse, diligência e reverência, foi o que se verificou na reação do povo à exposição da Lei. Todo o ambiente foi trabalhado para facilitar a boa audição. Um púlpito de madeira fora preparado para facilitar a propagação da voz do orador; obreiros auxiliares se distribuíram no meio do povo para desfazer qualquer interferência na comunicação, tirando dúvidas e traduzindo do Hebraico para o Aramaico. Quando Esdras abriu o livro, todo o povo se pôs de pé, levantavam a mão e diziam amém em sinal de aceitação (vv. 5,6). Por sete dias, por seis horas diárias, o povo infatigavelmente ouviu o Livro Santo. Somente um genuíno avivamento provoca essa sede por Deus e por sua Palavra

Há várias promessas bíblicas para os que ouvem diligentemente a Palavra de Deus. Jesus disse que os tais são bem aventurados (Lc 11.27) e os comparou ao homem sensato que edificou a casa sobre a rocha, a qual resiste a qualquer intempérie (Mt 1.24,25).

3. O Culto de Doutrina e a Escola Bíblica Dominical

Oh! quanto amo a tua lei! ela é a minha meditação o dia todo (Sl 119.97)

Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina. Persevera nestas coisas; porque, fazendo isto, te salvarás, tanto a ti mesmo como aos que te ouvem (1 Tm 4.16)

O culto de doutrina é um espaço para se expor e explicar ao povo as pilastras da fé, bem como para ministrações práticas que desenvolvam e aperfeiçoem o caráter cristão. Em muitas regiões, aparece com nomes diferentes como “culto de instrução” e “culto de ensino”. O que mais caracteriza este culto são as lições práticas extraídas de personagem bíblicos e de princípios básicos das Escrituras. Na realidade, o culto que mais se parece com o acontecimento exarado no capítulo 8 de Neemias é a Escola Bíblica Dominical, porque se propõe a ministrar de forma sistemática as doutrinas basilares da igreja de Cristo. Aliás, o pastor Antonio Gilberto comenta que o avivamento acontecido nos dias de Neemias teve origem num intenso ministério de ensino metódico muito similar à Escola Dominical de hoje.1

Em algumas igrejas, o culto de doutrina já não existe; em outras, acontece de forma precária devido a falta da homens da envergadura de Esdras e seus auxiliares para ensinarem ao povo. A realidade em relação à Escola Dominical também é desanimadora, pois, apesar de ser a principal agência de ensino de que a igreja dispõe, tem a sua importância desprezada pela maioria dos evangélicos. Como resultado dessa realidade, vemos muitas pessoas que, apesar de andarem na luz de Cristo, vivem nas trevas da ignorância doutrinária e, portanto, não conseguem dizer a razão da fé que professam (ver 1 Pe 3.15). Creio que, assim como aconteceu nos dias de Neemias, um real avivamento virá sobre a igreja de Cristo quando dermos (ou quando daremos) o devido valor a esta poderosa agência de ensino: Escola Bíblica Dominical.

II. O ENSINO BÍBLICO

1. Homens preparados para o ensino

Também Jesuá, Bani, Serebias, Jamim, Acube; Sabetai, Hodias, Maaséias, Quelita, Azarias, Jozabade, Hanã, Pelaías e os levitas explicavam ao povo a lei; e o povo estava em pé no seu lugar.(Ne 8.7).


Desde os dias de Moisés, passando pelos reis de Israel, pelas sinagogas no Cativeiro babilônico, até chegar ao avivamento que ora estudamos, o ensino permanente das Escrituras era preocupação de Deus para o seu povo; para isso, Ele vocacionou e levantou muitos mestres dentro de Israel. Os professores podiam ser os reis e sacerdotes (Dt 24.8; 2 Cr 17.7-9) ou os rabinos nas sinagogas do exílio.

Porém somente no pós-cativeiro, através do escriba Esdras, o ensino passou a ser aplicado de forma metódica e popular, algo muito semelhante às escolas bíblicas que temos hoje. Ali, foram designados mestres dentre o povo para ensinar com eficiência a Palavra de Deus em todas as cidades de Judá. O pastor Antonio Gilberto nos ajuda com uma observação muito importante sobre aquela escola.

“Esdras era o superintendente (Ne 8.2); o livro-texto era a Bíblia (Ne 8.3); os alunos eram homens, mulheres e crianças (Ne 8.3; 12.43). Treze auxiliares ajudavam a Esdras na direção dos trabalhos (8.4) e outros treze serviam como professores ministrando o ensino (8.7,8). O horário ia da manhã ao meio dia. Afirma o versículo 8 que os professores liam a palavra de Deus e explicavam o sentido para que o povo entendesse”.2

No Novo Testamento, vemos que pessoas foram dotadas pelo Espírito Santo para o ministério do ensino, os mestres ou doutores (Ef 411). A responsabilidade e importância desses mestres é muito grande diante de Deus e da igreja, pois têm a incumbência de salvaguardar a genuína doutrina bíblica e transmiti-la aos fiéis sem transigência nem corrupção (2Tm 1.11-14). Por isso, além de receberem a vocação de Deus, precisam que seus ministério recebam constante investimento, tanto de si mesmos como da igreja. O conselho do apóstolo Paulo aos tais é que “se [a vocação] é ensinar, haja dedicação ao ensino” (Rm 12.7).

No avivamento do capítulo 8 de Neemias, Esdras não só lia, mas explicava o sentido e fazia o povo entender o que estava escrito, causando uma comoção geral na plateia. O avivamento genuíno só pode acontecer quando há estudo, entendimento e prática da Palavra de Deus, processo em que é essencial a atuação dos mestres. Não seria nenhum exagero dizer que o avivamento da igreja passa por eles. Este comentário da Bíblia de Estudo Pentecostal é muito esclarecedor.

Os mestres são essenciais ao propósito de Deus para a igreja. A igreja que rejeita, ou se descuida do ensino dos mestres […] não se preocupará pela autenticidade e qualidade da mensagem bíblica […]. A igreja onde mestres e teólogos estão calados não terá firmeza na verdade. Tal igreja aceitará inovações doutrinárias sem objeção […]. 3

2. A Bíblia é a Palavra de Deus.

“Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça” (2Tm 3.16).

“Vivifica-me segundo a tua Palavra” (Sl 119.25)

A Bíblia é a inerrante e infalível Palavra de Deus; sua mensagem é espírito e vida (Jo 6.63). Não se pode conceber a ideia de avivamento sem a pregação, explanação e entendimento das doutrinas bíblicas. Aliás, todos os avivamentos de que temos ciência, tanto os registrados nas Páginas Sagradas quanto os registrados na história da igreja, eclodiram através de um retorno à Bíblia. Na história de Israel, vemos alguns acontecimentos que mostram a estreita relação que existe entre o Livro Santo e o avivamento espiritual. Além do avivamento sob Neemias e Esdras, temos o exemplo do rei judeu Josafá que, preocupado com a situação espiritual de Judá, designou pessoas competentes para que fossem de cidade em cidade anunciando a Lei de Deus, o que resultou em grande despertamento ( 2Cr 17. 7-9); e do rei Josias que herdou uma Judá afundada em idolatria, mas que achou o Livro da Lei e tomou providências para que o povo fosse instruído nele, e o resultado foi um dos maiores avivamentos da história bíblica (2Cr 34: 14-18). E o que dizer das experiências de Lutero e Willian Seymour, dentre outros?

III. O ENTENDIMENTO DA PALAVRA GEROU O AVIVAMENTO

1. O ensino significativo.

Assim leram no livro, na lei de Deus, distintamente; e deram o sentido, de modo que se entendesse a leitura (Ne 8.8)

Além de expôr as Sagradas Letras, Esdras se preocupou em explicá-la de maneira que o povo entendesse. Ao entenderem, caíram em pranto, pois o entendimento do real significado da Revelação Divina funciona como espelho diante do pecador, o qual reflete seu real estado, levando-o ao arrependimento. Aliás, é o que acontece na regeneração do pecador: o Espírito Santo abre-lhe o entendimento para a realidade do pecado e para a justiça e santidade de Deus. Uma vez regenerado, o novo crente precisa passar por um processo de discipulado a fim de entender as verdades das Escrituras e aplicá-las corretamente à sua vida. As lágrimas do povo produziam-se nas entranhas de um coração arrependido, pela consciência de ter ofendido ao Senhor, todavia Esdras e Neemias sugeriram aos seus compatriotas que enxugassem as lágrimas pelos males do passado e passassem a celebrar um tempo de restauração. Deus estava cumprindo suas promessas. O avivamento havia chegado.

2. “Comei a gordura e bebei as doçuras” (Ne 8.10). Era realmente tempo de celebração. O templo e as muralhas da cidade foram reconstruídos, os opositores vencidos e o avivamento havia chegado. A orientação de Neemias e Esdras foi para que o povo saísse por toda a região circunvizinha e celebrassem as vitórias, comendo, bebendo e adorando. Queriam substituir um memorial de erros e fracassos por um memorial de gratidão. Vale também ressaltar que um verdadeiro avivamento se faz acompanhado de gestos de generosidade e amor ao próximo, nivela as pessoas envolvidas, das mais diversas classes sociais e hierarquias, à posição de servos de Deus; ou seja, realça o que as pessoas têm em comum e oblitera as diferenças. Ali os ricos deveriam se juntar aos pobres e repartir com eles a sua porção. Como bem lembrou o pastor Elinaldo Renovato, “a Palavra de Deus ensina-nos a respeito do socorro que se deve prestar aos mais carentes: 'aprendei a fazer o bem; praticai o que é reto; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão; tratai da causa da viúva “' (Is 1.17).4 Qualquer movimento espiritual que não provoca o sentimento de generosidade em direção ao próximo não pode ser considerado avivamento espiritual.

3. A alegria do Senhor é a nossa força

“Portanto não vos entristeçais, pois a alegria do Senhor é a vossa força” (Ne 8.10).

Um dos resultados do avivamento espiritual é a inundação de uma alegria sobrenatural nos corações alcançados; alegria que inspira motivação e vigor. Com a afirmação supracitada, Esdras e Neemias contrastaram toda a tristeza própria da condição humana, de fraqueza, pecado, culpa e desespero, com o gozo sobrenatural que vem de Deus para quem se apropria das riquezas de sua graça. Por isso que nós não sucumbimos diante de nossa própria condição, porque a alegria do Senhor é a nossa força. Se a tua Palavra não fora toda a minha recreação, então eu teria perecido na minha angústia (Sl 119.92).

“A proclamação da Palavra de Deus, juntamente com um propósito sincero de obedecer aos seus ensinos, resultará em verdadeira alegria na alma. Essa 'alegria do Senhor' vem de nossa reconciliação com Deus e da presença do Espírito em nossa vida. É mantida pela certeza de que fomos perdoados em Cristo e restaurados à comunhão com Deus, e que agora vivemos em harmonia com sua vontade (vv. 10-13; cf. Lc 7.50). Essa alegria age (1) como uma fonte para nos guardar das aflições e tentações de todos os dias (cf. Sl 119.165; Gl 5.22; Fl 4.4); e (2) como poder e motivação para perseverarmos na fé até o fim”.5

CONCLUSÃO

Aprendemos por meio do fato narrada no capítulo oito do livro de Neemias que somente o ensino, entendimento e prática da Palavra de Deus podem propiciar um genuíno avivamento espiritual. Como observa o pastor Elinaldo Renovato, o povo se alegrou com o Templo construído, jubilou com a restauração dos muros da cidade, mas o avivamento somente veio quando a Palavra foi ensinada.

domingo, 9 de outubro de 2011

Subsídio para professores de Escola Dominical

Psicologia Educacional 1
O aluno

“Num conceito moderno de ensino, o professor é, em síntese, um educador. Para cumprir seu papel, precisará mergulhar primeiro no mundo do aluno que, o quanto possível, precisará ser o seu” (Lécio Dornas).

Talvez o maior erro que nós cometemos no magistério cristão é, no nosso preparo como professores, focar demasiadamente o estudo do conteúdo ministrado e, por outro lado, esquecer de estudar a pessoa do aluno. Paulo Freire já se referia a um tipo de educação que ele denominava de bancária, em que a função do professor se divide em dois momentos: na biblioteca, preparando a aula, e na sala de aula, despejando conhecimento nos alunos. Essa maneira de encarar o magistério, tendo o aluno como simples depositário do conhecimento, é retrógrada e não contribui em nada para a a educação de qualidade. Como alerta o pastor Antônio Gilberto, para o êxito do ensino, é indispensável ao professor conhecer não apenas a sua matéria, mas também o seu campo de aplicação, o aluno. Ainda segundo o Gilberto,o semeador deve conhecer o terreno onde vai semear, que o aluno é a matéria-prima da escola e, portanto, o professor deve estudar não só a lição, mas também o aluno. O estudo das teorias a seguir ampliará nossa compreensão acerca desse tesouro a nós confiado.

1. Teorias do desenvolvimento

O desenvolvimento humano resulta da aprendizagem, com base na experiência ou adaptação ao ambiente. Assim, a vida é um contínuo processo de aprendizagem em que  novos eventos e novas experiências desenvolvem novos padrões de comportamento.

Desenvolvimento é o processo através do qual o indivíduo constrói ativamente, nas relações que estabelece com o ambiente físico e social, suas características. Ao contrário de outras espécies, as características humanas não são biologicamente herdadas, mas historicamente formadas.

De geração em geração, o grau de desenvolvimento alcançado por uma sociedade vai sendo acumulado e transmitido, indo influir, já desde o nascimento, na percepção que o indivíduo vai construindo sobre a realidade, inclusive no que se refere às explicações dos eventos e fenômenos do mundo natural.

1.1 A concepção inatista. As qualidades e capacidades básicas de cada ser humano – valores, hábitos, crenças, sua forma de pensar, reações emocionais e até sua conduta social – já se encontrariam basicamente prontas, em sua forma final, por ocasião do nascimento. Aqui o ambiente e a educação influem muito pouco.

1.2 A concepção empirista. O empirismo enfatiza a experiência sensorial como toda fonte de conhecimento. Aqui o homem nasce como uma folha de papel em branco e será apenas aquilo que lhe for impresso pelo meio social onde vive, sem nenhuma liberdade para escolher.

1.3 A concepção construtivista (Piaget). Segundo Piaget, o desenvolvimento acontece de forma dinâmica, a partir da constante interação entre o sujeito epistêmico e o meio onde ele vive. Na sua perspectiva, não é possível conceber a ideia de desenvolvimento separando sujeito e objeto. Ainda de acordo com Piaget, o desenvolvimento obedece a etapas sequenciais e regulares que ele chama de estádios, os quais vão complexificando numa sequência hierárquica, a partir das experiências que são proporcionadas aos sujeitos em desenvolvimento.

Estádio Sensório Motor (0 a 2 anos0
Estádio Pré-operacional (2 a 6 anos)
Estádio Operatório Concreto (7 a 11 anos).
Estádio Operatório Formal (12 a 15 anos

2. Teorias da aprendizagem

Teorias da aprendizagem são os diversos modelos que se propõem explicar como se dá o processo de aprendizagem pelos indivíduos. A partir da compreensão coerente de como o sujeito chega ao conhecimento, é possível confeccionar e aplicar os meios mais adequados à educação.


“No final, o processo educacional será todo permeado pela compreensão de homem do educador” (J. L.).

Muitas teorias já foram formuladas sobre a aprendizagem, porém aqui exporemos apenas as duas de maior destaque na educação contemporânea: As teorias de Piaget e de Vigotsky.

2.1Teoria do desenvolvimento cognitivo (Piaget)

a) Assimilação: Processo cognitivo pelo qual uma pessoa integra um novo dado perceptual, motor ou conceitual às estruturas cognitivas prévias. Quando uma criança tem novas experiências (vendo ou ouvindo coisas novas), ela tenta adaptar esses novos estímulos às estruturas cognitivas que já possui.

b) Acomodação: É a modificação de um esquema ou de uma estrutura em função das particularidades do objeto a ser assimilado. Pode acontecer de duas maneiras: Criar um novo esquema no qual se possa encaixar o novo estímulo ou modificar um já existente de modo que o estímulo possa ser incluído nele.

Um exemplo de acomodação e assimilação é quando uma criança que, do mundo animal, conhece apenas cachorro, vê pela primeira vez um cavalo: pela semelhança entre os dois animais, ela vai achar que se trata de um cachorro grande (assimilação), mas quando avisada tratar-se de outro animal, ou seja, um cavalo, a criança acomodará (acomodação) aquela nova informação a uma nova estrutura cognitiva, criando um novo esquema. Agora ela tem bem claros o conceito de cachorro e o conceito de cavalo.

c)Equilibração: Trata-se de um ponto de equilíbrio entre o processo de assimilação e acomodação, funcionando como um elemento regulador. “Para Piaget, o desenvolvimento cognitivo do indivíduo está sempre passando por equilíbrios e desequilíbrios. Isso se dá com a mínima interferência, seja ela orgânica ou ambiental. Para que passe do desequilíbrio para o equilíbrio são acionados dois mecanismos: O de assimilação e acomodação”.1

2.2 Teoria da mediação (Vigotsky)

2.2.1 Os níveis de desenvolvimento. Para Vigotsky, existem dois níveis de desenvolvimento: Desenvolvimento real e desenvolvimento potencial. O nível de desenvolvimento real consiste no conhecimento que o indivíduo já possui, que foi consolidado por ele e o torna capaz de, de maneira autônoma, resolver situações. O nível de desenvolvimento potencial, como indica o próprio nome, diz respeito a habilidade que o indivíduo possui apenas em potencial, não foram desenvolvidas, mas estão nele. É o desenvolvimento que poderá “vir a ser” construído pelo sujeito.

2.2.2 Zona de desenvolvimento potencial ou proximal. Diz respeito ao campo intermediário do processo entre as zonas de desenvolvimento real e potencial.

Tomando-se como premissa o desenvolvimento real como aquilo que o sujeito consolidou de forma autônoma, o potencial pode ser inferido com base no que o indivíduo consegue resolver com ajuda. Assim, a zona proximal fornece os indícios do potencial, permitindo que os processos educativos atuem de forma sistemática e individualizada.2

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

NÓS NÃO TEMOS HERÓIS (Francisco Carvalho)



NÓS, NÓS NÃO TEMOS HERÓIS. NEM JAMAIS OS TIVEMOS. AFINAL, PARA QUE SERVEM OS HERÓIS E SUAS ESTÁTUAS DE GRANITO OU MÁRMORE NEGRO, SEUS CAVALOS DE BRONZE, SUAS MEDALHAS BARROCAS E AS ESPADAS QUE NÃO PASSAM DE METÁFORAS?

PARA QUE SERVEM OS HERÓIS SE O ÁCIDO DA CHUVA DESDENHA DA GLÓRIA DOS HOMENS E NEM OS PÁSSAROS SE IMPORTAM COM ELES?

PARA QUE SERVEM OS HERÓIS SE NEM SABE QUEM SOMOS NEM JAMAIS OUVIRAM FALAR DOS NOSSOS MITOS E UTOPIAS?

INFELIZ DO PAÍS QUE NECESSITA DE HERÓIS.








Viver não dói

Drummond de Andrade

Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas
e não se cumpriram.

Por que sofremos tanto por amor?

O certo seria a gente não sofrer,
apenas agradecer por termos conhecido
uma pessoa tão bacana, que gerou
em nós um sentimento intenso
e que nos fez companhia por um tempo razoável,
um tempo feliz.

Sofremos por quê?

Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer
pelas nossas projecções irrealizadas,
por todas as cidades que gostaríamos
de ter conhecido ao lado do nosso amor
e não conhecemos,
por todos os filhos que
gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,
por todos os shows e livros e silêncios
que gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados,
pela eternidade.

Sofremos não porque
nosso trabalho é desgastante e paga pouco,
mas por todas as horas livres
que deixamos de ter para ir ao cinema,
para conversar com um amigo,
para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe
é impaciente conosco,
mas por todos os momentos em que
poderíamos estar confidenciando a ela
nossas mais profundas angústias
se ela estivesse interessada
em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu,
mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos,
mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós,
impedindo assim que mil aventuras
nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e
nunca chegamos a experimentar.

Como aliviar a dor do que não foi vivido?
 A resposta é simples como um verso:
Se iludindo menos e vivendo mais!!!

A cada dia que vivo,
mais me convenço de que o
desperdício da vida
está no amor que não damos,
nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca,
e que, esquivando-se do sofrimento,
perdemos também a felicidade.

A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional.




quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O PECADO DE DAVI E SUAS CONSEQUÊNCIAS


“E aconteceu, tendo decorrido um ano, no tempo em que os reis saem para a guerra, enviou Davi a Joabe, e a seus servos com ele, e a todo o Israel, para que destruíssem os filhos de Amom e cercassem Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém” (2 Sm 11.1).

INTRODUÇÃO

Nesse espaço, veremos uma fase de declínio na vida de Davi, o grande rei de Israel. Sua história ficaria manchada para sempre pela mácula de um adultério e consequente homicidio. No capítulo 11 de 2 Sm, encontramos o relato de um dos crimes mais condenáveis da história bíblica. O homem que já houvera derrubado inimigos quase imbatíveis e vencido guerras quase invencíveis em nome do Senhor rendeu-se incondicionalmente ao desejo carnal desenfreado pela mulher de um de seu melhores súditos. Numa tarde, enquanto passeava pelo terraço da casa real, ao ver Bate-Seba se lavando, Davi mandou perguntar quem era aquela linda mulher e, apesar de saber que se tratava da esposa de um grande amigo, trouxe-a à sua casa e a possuiu. Para desespero do rei, a mulher ficou grávida. Ele então mandou buscar Urias, seu marido, no campo de batalha para que ficasse com sua mulher algum tempo a fim de imputar-lhe aquela concepção. Como Urias se recusou a proceder conforme a ordem do rei de Israel, este arquitetou sordidamente a sua morte, ordenando a Joabe, por meio de carta enviada pela mão do próprio Urias, que o colocasse à frente do campo de batalha, em local indefensável, para que morresse. Morto Urias, Davi tomou a viúva como sua esposa e continuou a vida como se nada tivesse acontecido. Somente depois de confrontado duramente por Deus, o rei de Israel reconheceria seu erro e seria perdoado; todavia as conseqüências do seu pecado seriam danosas e duradouras.

DAVI E A TENTAÇÃO

A tentação é uma realidade com a qual todas as pessoas têm lidado desde o inicio do mundo. No jardim do Éden, ainda antes do fracasso de Adão e Eva, a tentação já era uma realidade, pois quando Lúcifer tentou nossos primeiros pais, eles ainda não haviam pecado. Por isso, vale ressaltar, ser tentado não é pecado, pois nenhum homem está isento disso, nem mesmo o próprio Filho de Deus esteve (Mt 4.1-11), mas pecado é ceder à tentação. Ser tentado também não é sinal de carnalidade, mas uma evidência de nosso caráter humano.

A Bíblia Sagrada é clara sobre a inevitabilidade da tentação. Quer falemos dos patriarcas ou profetas, reis ou apóstolos, todos sentiram o empurrão sutil da tentação impelindo para a prática do mal e, não raro, muitos daqueles herois sucumbiram. Vemos um Abrão, amigo de Deus, entregar-se à tentação de mentir a Faraó, dizendo que Sara era sua irmã e não esposa a fim de livrar a própria pele (Gn 12.10-20). Encontramos um Jacó cedendo à tentação de enganar seu pai para usurpar a bênção de Esaú, seu irmão (Gn 27.6ss). Mais tarde, os filhos de Jacó cederiam ao desejo de se vingarem de seu irmão, José, e o venderiam como escravo (Gn 37.1-28). Moisés, o grande libertador, perdeu o controle e matou um egípcio (Ex 2.11,12). Visto que o objeto do nosso estudo é Davi, com o rei de Israel não foi diferente. Davi, apesar de todas as suas virtudes decantadas na Bilbia, era homem sujeito às mesmas paixões que aliciam a alma de todos os homens. O homem segundo o coração de Deus encontrava-se no apogeu do seu reinado quando, tomado por paixões infames, caiu em pecado de adultério com Bate-seba, esposa de seu fiel soldado Urias. A gravidez resultante do adultério desencadeou uma série de outros pecados, entre eles o homicídio cruel do marido traído, numa tentativa tresloucada do rei de Israel de encobrir o seu pecado.

Na Bíblia Sagrada, encontramos o registro de três fontes de onde a tentação pode fluir: o mundo, a carne e o diabo.

A carne. Quando a Bíblia fala da carne como fonte de tentação, refere-se à natureza humana caída, cheia de paixões e desejos, lícitos ou ilícitos, muitos dos quais conspiram contra a lei do Espírito de vida (Rm 8.1,2).

Devido o efeito degenerativo do pecado na espécie humana, o ambiente em que vivemos passou a ser um lugar cada vez mais estimulador da prática do mal, em oposição à Palavra de Deus. Todos os dias, somos bombardeados por milhares de estímulos internos e externos que nos incitam à prática de atos pecaminosos. É o que Freud chamou de princípio do prazer X princípio da realidade. Dentro de uma relação inseparável, a natureza humana e o mundo proporcionam prazeres de toda sorte, os quais se chocam com o código moral prescrito pela Palavra de Deus, orientadora de como o homem deve viver para encontrar a verdadeira felicidade. Renunciar aos prazeres ilícitos, tendo como contraponto a observância dos mandamentos divinos, é uma questão de sobrevivência da espécie humana.

Em Gálatas 5.16-25, o apóstolo Paulo fala da guerra espiritual que consiste de desejos na carne militando contra o desejo do Espírito. O referido apóstolo cita uma série de obras que são próprias da carne, ou seja, da natureza humana degenerada. Sua recomendação contra as paixões da carne é para que andemos no Espírito (v 16). Em Romanos 13. 14, a recomendação paulina é para que nos revistamos do Senhor Jesus Cristo e não tenhamos cuidado na carne e em suas concupiscências.

O mundo: O vocábulo "mundo", no sentido empregado aqui, diz respeito ao sistema iníquo que rege a vida dos homens (busca do poder, riquezas, independência de Deus etc), em nossos dias, amplamente difundido pelos meios de comunicação em massa, jornais, radio, televisão e revistas. A finalidade é levar os homens a ignorarem a existência de Deus e se tornarem livres para decidir o que fazer de suas vidas. Trata-se de um sistema que se opõe abertamente ao Reino de Deus. Por isso que a Bíblia usa prodigamente a palavra mundo relacionada ao sistema regido pelo maligno. Na sua primeira Epístola Universal, o apóstolo João nos adverte a que não amemos o mundo nem o que no mundo há (2.15), pois este mundo jaz no maligno (15.19). O apóstolo Tiago avisa que qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus (Tg 4.4). Como um ímã, o mundo exerce um magnetismo quase inexorável sobre as paixões humanas, de sorte que os pecadores são arrastados como se por uma correnteza ao encontro dos prazeres e encantos que os levarão à ruína. A única arma capaz de vencer o mundo é a fé decorrente do novo nascimento. “Porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1 Jo 5.4).

O Diabo: Satanás é o agente principal da tentação. Ele é chamado de “o tentador” (Mt 4.3). Em toda a Bíblia Sagrada, vemos suas estratégias e velhos truques a fim de induzir pessoas ao erro. Só para ficar em alguns casos mais importantes: foi Satanás quem incitou Eva a comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal e, portanto,  desobedcer a ordem de Deus, o que resultou em deletérias conseqüências para a humanidade (Gn 3.1); quem incitou Davi a enumerar o povo de Israel em um ato de desobediência ao Senhor, que também suscitou danosas conseqüências (1 Cr 21.1); quem, com genialidade e artifícios impressionantes, tentou Jesus a atropelar a vontade de Deus para a sua vida, porém, neste caso, não teve sucesso (Mt 4.1-11).

Contra o agente da tentação, a Bíblia nos recomenda o revestimento de toda a armadura de Deus (Ef 6.10,11) e, a partir daí, resistir ao diabo até que ele fuja (Tg 4.7).

O PECADO DE DAVI

Muito já se foi dito sobre a tentação e conseqüente pecado do maior rei de Israel. Livros e sermões já foram inspirados nele. Afinal de contas, por que um homem tão amado por Deus, de virtudes inescapáveis, chegou a praticar crime tão covarde contra um de seus fieis súditos? É uma pergunta que tem sido levantada durante os séculos e respondida de várias maneiras por aqueles que se dispõem a analisar o comportamento humano. Como um homem de Deus chega a tamanha crueldade e covardia? Talvez Davi seja o personagem bíblico que melhor representa o ser humano em suas complexas potencialidades, tanto para fazer o bem, como para fazer o mal. Com esse comentário, levanto a questão de o quanto somos circunstanciais, imprevisíveis e vulneráveis. Como disse um professor: "Nos recônditos da alma humana, existe um amontoado de desejos miseráveis, e a linha que separa o desejo do ato é muito tênue". Por isso a necessidade constante que temos de nos policiarmos, pois potencialmente o mal mora logo ali, ou melhor, logo aqui, dentro de cada um.

Antecedentes de uma tragédia.

1) A ociosidade do rei. O escritor bíblico diz que no tempo em que os reis saiam à guerra, Davi enviou Joabe, e a seus servos com ele, e a todo o Isael para que destruíssem os filhos de Amom e cercassem Rabá, porém Davi ficou no palácio (não deixe escapar a importância do porém, o grifo é nosso). Note que era tempo de guerra e não de descanso. Os reis saiam para a batalha a partir da primavera, definindo conquistas e reafirmando as fronteiras de seu país. Davi errou, não apenas em não liderar o povo à guerra, mas principalmente por descumprir a lei da guerra, conforme Deuteronômio 20, a qual rezava que os líderes deveriam estar na dianteira do povo. O rei de Israel, todavia, estava em casa descansandoocasião, ocioso, passeando no terraço da casa real (2 Sm 11.1-2).

Há um adágio que diz: Todos precisam achar alguma forma de gastar o tempo. É preciso matar o tempo em algum lugar. Não nos enganemos: a atenção humana nunca está alheia ou neutra, ela sempre se volta para alguma coisa. Enquanto passeava pelo palácio, o rei teve a sua atenção atraída para uma mulher muito bonita que estava se lavando em algum lugar inadequado. Até aqui tudo bem. O rei poderia ter desviado a atenção ou se dirigido a outro lugar do palácio, porém, condescendente com o próprio desejo, como alguém que aprecia uma simples paisagem ao entardecer, inflamou a lascívia do seu coração e foi dominado pela cobiça. Até aqui, ele ainda tinha a capacidade de dominar sobre o seu desejo.

2) A cobiça desrespeita todos os valores e não mede conseqüências. Davi, fascinado pela beleza da mulher, resolveu dar mais um passo em direção ao perigo: mandou perguntar o nome da da beldade. Era Bate-Seba, filha de Eliã, mulher de Urias. Urias e Eliã faziam parte dos valentes de Davi, dois súditos leiais do rei. No livro de 2 Samuel, capítulo 23, a partir do versículo 24, começa a listagem dos grandes guerreiros de Davi, e ali dois nomes se destacam: “Eliã, filho de Aitofel, gilonita”, (v 34) e Urias, heteu (v 39). Note que este Aitofel, avô de Bate-Seba, era o grande conselheiro de Davi  que, mais tarde,como num ato de vingança, aconselhou Absalão a possuir as mulheres do rei publicamente (2 Sm 16.20-23). Os laços de amizade e lealdade deveriam ter servido de freio ao desejo insano do rei, porém o veneno da cobiça já corria em toda a sua corrente sanguínea e já havia contaminado todas as suas células. A partir daí, o desejo não conhece obstáculo nem mede conseqüências. É por isso que quando uma pessoa se entrega à tentação, pode se encontrar numa situação absolutamente impossível de resistir.

Note que a barreira principal que se interpõe entre a tentação e a prática do pecado é o temor a Deus expressado na observância de sua Palavra (Sl 119.11). Por isso, as leis de Deus deveriam ter servido de freio para Davi, porém, no incidente com Bate-Seba, ele quebraria o sexto mandamento: "Não matarás"; o sétimo mandamento: "Não adulterarás"; e o décimo mandamento: "Não cobiçarás" (Êx 20:1-17). Todas essas barreiras morais seriam dirimidas pelo trator da cobiça.

Quantas histórias já ouvimos de maridos que abandonaram esposas, de amigos que jogaram para o ar anos de lealdade, chefes de família que abandonaram filhos, pastores que abandonaram igrejas; enfim, pessoas que cuspiram em todos os valores e princípios que defenderam a vida toda, porque viraram presa da cobiça quando brincavam com o pecado. Convém salientar que nem todos que procedem desta maneira realmente não amavam seus pares, não eram homens honestos e justos - não é isso -, mas não vigiaram em algum lugar de sua vida, momento em que deveriam ter eliminado o mal no seu nascedouro, e foram envenenados pela concupiscência. Não nos enganemos: se o pecado não fosse realmente tão danoso, a Bíblia não soaria um alarme tão estridente contra ele (1 Coríntios 10:12).

A consumação do pecado.

"Depois, havendo a concupiscência concebido-a, dá à luz ao pecado” (Tg 1.15). Prostrado finalmente à concupiscência, Davi manda trazer Bate-Seba e se deita com ela, totalmente cego às conseqüências de seu ato. A Bíblia mostra que a tentação segue algumas etapas. Tiago diz que cada pessoa é tentada quando atraída ou engodada pela sua própria concupiscência. Primeiro, Davi olhou; depois mandou perguntar o nome da mulher; em seguida, mandou buscá-la para o palácio. Neste ponto, a concupiscência já havia concebido, e daria luz ao pecado. Agora, o homem de Deus era apenas um escravo do seu pecado e desejos. O homem que, outrora, estivera a serviço de Deus, agora estaria a serviço do diabo.

A loucura de querer reparar um erro irreparável.

A Bíblia diz que um abismo chama outro abismo (Sl 42.7). Alguns dias depois do adultério, Davi ficou sabendo que Bate-Seba estava grávida. Tal notícia caiu como uma bomba na cabeça do rei, e então ele começou um vale-tudo para encobrir o seu pecado. Tanto Davi como Bate-Seba estavam cientes das implicações de seu erro. Levítico 20.10 deixa claro: “Se um homem cometer adultério com a mulher de seu próximo, ambos, o adúltero e a adúltera certamente serão mortos”. Bom, o pecado de Bate-Seba estaria visível ante o seu marido; ela seria certamente punida. Será que ela teria coragem de acusar o rei? Se fizesse, as suas palavras teriam alguma credibilidade? Davi assumiria sua culpa ou, uma vez adoecido pelo pecado, refutaria Bate-Seba? Isto nós não sabemos. O que não podemos perder de vista é que qualquer desvio da vontade de Deus abre o caminho para cada vez mais loucura e engano. Transgredindo a vontade de Deus, Davi abriu o caminho para mais tentações. A condescendência com uma paixão, longe de removê-la, só torna essa paixão mais e mais forte. Se Davi tivesse seguido o ideal de Deus, ele teria estado menos sujeito às tentações de Satanás. Neste caso, as comportas foram abertas, e Davi foi arrastado pela inundação.

Um apelo à astúcia

 Atormentado pelo desespero, o rei apelou para a astúcia. Arquitetou um plano, aos seus olhos infalível: resolveu dar férias a Urias, o marido traído, e mandou que o trouxessem do campo de batalha para casa (bondoso, não?). Davi pensava consigo: estando Urias com a sua mulher, entrará a ela, e a gravidez dela será atribuída a ele (2 Sm 11.10-12). Davi só não contava com a lealdade e a sensatez de Urias, o qual se recusou terminantemente aos prazeres do sexo, enquanto seus compatriotas estavam no calor da batalha. “ A arca, e Israel, e Judá estão em tenda, e Joabe, meu senhor, e os servos de meu senhor estão acampados ao relento. Como poderia eu entrar na minha casa, para comer e beber, e para me deitar como minha mulher? Tão certo como vives, não farei tal coisa” (2 Sm 11.11). Todavia a astúcia do rei desviado desconhecia limites. Ele, então, tentou forçar Urias por meio do álcool e o embriagou; porém a lealdade deste também desconhecia limites e ele mais uma vez se recusou a ir à sua casa.

Alguém disse uma vez que a vantagem que o mal às vezes tem em relação ao bem é que o mal não reconhece limites em suas ações, enquanto que o bem só pode atuar dentro de certos limites traçados pela ética e pelo bom senso. O rei de Israel já não conhecia limites às suas ações ímpias. Ele queria se livrar daquela situação a qualquer custo. Ele apelou, então, para uma solução extrema: matar Urias.

Crueldade desmesurada.

Vencido pela persistência de Urias, Davi escreveu uma carta do próprio punho, ordenando a Joabe que pusesse Urias no lugar mais perigoso da batalha e retirasse os homens de detrás dele para que fosse ferido e morresse, e a mandou pelas mãos do próprio Urias (2 Sm 11.15). Como observa o pastor Elinaldo Lima, Como Urias era um servo fiel, não violou a carta. Se o tivesse feito, veria que estava levando a própria sentença de morte.

Às vezes eu me pego pensando na surpresa de Joabe quando abriu aquela carta. Ele estava sendo forçado a ser cúmplice do rei em um assassinato covarde, sem nem saber o motivo. Sem dúvida ficou sabendo mais tarde quando voltou e viu Bate-Seba na casa de Davi. A minha proposição é que, a partir dali, Davi ficou praticamente nas mãos de Joabe, pois os atos deste se tornavam cada dia mais reprováveis e desobedientes, porém o rei Davi não o puniu nenhuma vez, muito pelo contrário, vemos Joabe repreendendo asperamente o rei e o ameaçando quando aquele general matou absalão, desobedecendo a ordem do rei (ver 2 Sm 18.5-18; 19.1-10). Foi Joabe quem enganou o rei para trazer absalão de volta do exílio (2 Sm 14.1-21). Tendo Davi posto Amasa no lugar de Joabe, à frente do exercito de Israel, Joabe o matou covardemente e retomou sua posição (ver 2 Sm 19.13; 20.10). Davi não tomou nenhuma medida para puni-lo. Note ainda a alfinetada que Joabe deu em Davi quando mandou avisar ao rei da morte de Urias em 2 Sm 11.19-21 Somente depois de passar o reino a Salomão, antevendo a sua iminente morte, Davi dar ordem para que, depois de sua morte, Salomão mate Joabe, como punição pelos seus crimes (1 Rs 2.5,6). Davi, depois de seu pecado, era um rei sem autoridade, o que normalmente sucede a todos os que pecam e causam escândalo.

Insensibilidade

Sabendo da morte de Urias, Davi, cinicamente, mandou dizer a Joabe: “Não te pareça mal aos teus olhos; pois a espada tanto consome este como aquele” (2 Sm 11.25). Estava resolvida a questão: Davi tomou Bate-Seba como sua esposa e se portou tranqüilamente como se nada houvera acontecido por cerca de um ano. O homem de Deus estava com a consciência cauterizada (cf 1 Tm 4.2). Seu estado de entorpecimento era tão grande que se não fosse um confronto direto com Deus por iniciativa deste, ele teria morrido em seu pecado sem nunca confessá-lo.

DAVI E A INTERVENÇÃO DE DEUS

Uma das grandes lições deste episódio é a imparcialidade da justiça divina, bem como as riquezas de sua misericórdia. Deus não pode condescender com o pecado, seja lá de quem for - Ele é justo. Certamente Davi pensou que o fato de ser rei de Israel, ungido do Senhor, lhe isentaria do juízo de Deus. “Não fará justiça o Senhor de toda a terra?” (Gn 18.25). Mais ou menos um ano depois – o menino já havia nascido (2 Sm 12.14) – , o rei estava tranqüilo em sua casa, celebrando a chegada de mais um filho, quando o profeta Natã aparece no pátio. Natã estava levando uma causa para que o rei julgasse. O que ele tinha para dizer era muito sério. Tratava-se de um camponês que possuía uma única ovelha e de um fazendeiro que tinha muitas ovelhas. Certa ocasião, o fazendeiro rico tomou a única ovelha que o pobre camponês tinha, a qual ele amava, e ofereceu como guisado ao seu visitante (2 Sm 12.1-6). Quem poderia ficar impassível diante de uma injustiça dessa? Davi ficou irado. “Este homem é digno de morte” ele disse. “Pela cordeira restituirá o quádruplo, porque fez tal coisa e não se compadeceu” (2 Sm 12.6). Davi estava promulgando sua própria sentença.

É comum desculparmos em nós mesmos aquilo que com veemência condenamos nos outros. O comentarista José Gonçalves foi muito feliz neste comentário: “É comum alguém que pecou e não tratou de forma devida o seu pecado projetar um sentimento de justiça e uma falsa santidade perante os outros”.2 Atente para palavra grifada (o grifo é meu). O conceito de projeção em Psicologia consiste em o indivíduo atribuir ao outro aquilo que é predicado seu. Por não aceitar em si, ele reprime e projeta no outro. Foi o que aconteceu com Davi, depois que o grande mestre Natã manipulou tão bem as questões emocionais não resolvidas do rei. Na parábola, Natã expôs o mal de maneira tão clara que conseguiu despertar uma resposta de indignação moral no empedernido coração do rei de Israel.

“Tu és este homem”, replicou o profeta Natã. “Assim diz o Senhor, Deus de Israel: A Urias, o heteu, feriste a espada, e a sua mulher tomaste por tua mulher; a ele mataste com a espada dos filhos de Amom” (2 Sm 12.7,9). O rei de Israel agora estava diante do espelho, de frente às suas misérias, desnudo, algo que só pode acontecer por meio de um confronto com Deus (cf Is 6.5). Há situação em que o estado de cauterização da consciência é tão grande que somente um encontro com Deus é capaz de fazer cair as escamas dos olhos e expor as misérias humanas. E o mais interessante: a iniciativa é sempre de Deus.


CONSEQUÊNCIAS DO PECADO

Uma lição inescapável neste caso é a de que o pecado, uma vez consumado, deixa suas conseqüências deletérias, ainda que seja perdoado por Deus. O pecado nunca acontece no isolamento; cedo ou tarde, de uma forma ou de outra, as conseqüências aparecem. Seus efeitos danosos levam sofrimentos tanto ao que pecou como a muitas outras pessoas inocentes. Nós não podemos nos enganar: depois da queda espiritual, a vida muda em todos os aspectos. Quantos lares destruídos, quantas famílias desmanteladas, sonhos e projetos frustrados, vidas ceifadas precocemente, por causa de um descuido de alguns crentes. “Não vos enganeis: Deus não se deixa escarnecer. Tudo o que o homem semear, isso também ceifará” (Gl 6.7). Davi seria perdoado por Deus, mas beberia um cálice amargo pelo resto de sua vida.

1) Sentenças divinas. Após denunciar o pecado de Davi, ali mesmo, o profeta proferiu duas sentenças divinas conta o rei. “Agora, portanto, a espada jamais se apartará da tua casa”. Foi exatamente o que aconteceu. O filho que nascera daquele adultério morreu logo em seguida (2 Sm 12.14). Amom foi assassinado por Absalão (2 Sm 13.28,29). Absalão foi morto por ter-se rebelado contra o pai (2 Sm 18.9-17). Mais tarde, Adonias também seria morto à espada (1 rs 2.24,25). Lembremos que Davi sentenciou que o homem da parábola, que tomou a ovelha do outro deveria pagar quatro vezes mais (2 Sm 12.6).

“Assim diz o Senhor: Eu suscitarei da tua própria casa o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres perante os teus olhos, e as darei ao teu próximo, o qual se deitará com elas a plena luz do dia. Tu o fizeste em oculto, mas eu farei este negócio perante todo o Israel, a plena luz do dia” (2 Sm 12.11,12). Para começar, Davi teve uma de suas filhas estuprada por um de seus irmãos (2 Sm 13.10-15). Depois Absalão, seu próprio filho, usurpou-lhe o reino e abusou sexualmente de suas mulheres em plena praça pública (2 Sm 15.1ss).

2) Conseqüências emocionais. Davi era um homem de alma despedaçada. As vergonhas, humilhações e execrações (2 Sm 16.5-8) por que passou o rei de Israel não encontram pares na Bíblia. As desgraças que se abateram sobe ele envolveram rompimento de antigas amizades (2 Sm 23.34), vexações familiares, desagregação do seu reino, deslealdade de seus súditos e perda de autoridade. Era um homem com feridas profundas na alma e sulcos profundos sobre as suas costas (Salmo 129). Seus salmos retratam com nítidas cores seus infortúnios (ver os salmos 6, 13, 22, 25, 38, 40, 41). A idade em que morreu - cerca de setenta anos (cp 2 Sm 5.4 e 1 Rs 2.10) - debilitado como estava, talvez tenha muito a ver com as angústias e frustrações de sua alma. Todavia, convém salientar, todas as sua feridas o impeliram para cima de Deus e o levaram a aprofundar suas experiências com Ele. Como já foi dito, o pecado cobra seu preço.

3) Conseqüências espirituais e físicas. No tocante aos efeitos espirituais e físicos, é muito pertinente o comentário do pastor José Gonçalves, o qual transcreveremos a seguir.

Não há dúvida de que os maiores efeitos do pecado de Davi estão na esfera espiritual. O pecado parece doce, inofensivo e natural, no entanto, suas conseqüências são amargas. Paulo, o apóstolo, adverte em sua primeira carta aos coríntios: “Por causa disso [do pecado], há entre vós muitos fracos e doentes e muitos que dormem” (1 Co 11.30). Em outras palavras, aquilo que é espiritual num primeiro plano, tem conseqüências físicas em segundo. Os especialistas advertem que há muitas doenças psicossomáticas, isto é, doenças da alma ou de origem psicológica que afetam o corpo físico. A Bíblia nos mostra que há também doenças de origem espiritual. A Palavra de Deus adverte: “Confessai as vossas culpas uns aos outros e orai uns pelos outros, para que sareis ; a oração feita por um justo pode muito em seus efeitos (Tg 5.16). Davi pôs em prática isso e clamou ao Senhor: “[...] Tem piedade de mim; sara a minha alma, porque pequei contra ti” (Sl 41.4). (lições bíblicas CPAD, 4º semestre de 2009, p. 60).


CONCLUSÃO

“Depois de algum tempo você descobre que se leva anos para se construir confiança e apenas segundos para destruí-la, e que você pode fazer coisas em um instante, das quais se arrependerá pelo resto da vida.” Esta frase de Willian Shakespeare é um verdadeiro tratado sobre a condição humana. Ela resume bem este episódio triste da vida de Davi. A sua decisão por ceder à tentação, quando deveria ter resistido, deixaria manchas irremovíveis em sua historia de vida. Mas não é só isso. Sua história com Bate-Seba nos mostra que até os mais piedosos dos homens, se não forem cuidadosos, são capazes de cometer os piores pecados; mostra que as conseqüências de nossos atos são inevitáveis; mas também mostra que, por mais profundo que seja o lamaçal em que o pecador esteja mergulhado, o perdão de Deus pode alcançá-lo.


BIBLIOGRAFIA

Bíblia de Estudo pentecostal/ CPAD.
Bíblia de Estudo Aplicação Pessoal/ CPAD
Paul Gardner/ Quem é Quem na Bíblia Sagrada/ Editora Vida.
Ogilvie, Lioyd John/ O Senhor do Impossível/ Editora Vida.
O Novo Dicionário da Bíblia/ Edições Vida Nova.
Lições bíblicas CPAD/ Salmos, a lira de Israel na devoção do homem moderno (3º trimestre, 1997).
Exley, Richard. Os sete estágios da tentação. São Paulo: Vida, 2000.