domingo, 20 de março de 2011

Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (parte 1)


“Lembra-te de que Jesus Cristo, que é da descendência de Davi, ressuscitou dos mortos, segundo o meu evangelho” (2 Tm 2.8).

Jesus Cristo é a figura central de toda a teologia cristã. Segundo esta mesma teologia, Ele era plenamente Deus e plenamente homem. E assim será sempre. Será que a Bíblia Sagrada dá suporte a essa definição com material tão satisfatório a ponto de  não deixar dúvida?  Vejamos.

A igreja pós apostólica teve grande dificuldade para chegar a um entendimento comum a respeito da pessoa de Cristo, mormente no que diz respeito às suas duas naturezas (divina e humana). Decerto, era lugar comum entre os pais da recém constituída igreja que, para levar a efeito a salvação da raça humana, Jesus tinha que ser verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Mas, a partir desse entendimento comum, começaram a surgir tentativas de explicar às mentes humanas o que os cristãos queriam dizer ao confessarem que o homem Jesus comportava em sua única pessoa as naturezas divina e humana. Tais tentativas, ainda que bem intencionadas, resultaram em formulações e argumentos obscuros e inconsequentes sobre o Filho de Deus, mergulhando a igreja em um oceano de controvérsias.

1. Principais controvérsias cristológicas
1.1Apolinarismo. Apolinário, bispo de Laodicéia, ensinava que a pessoa única de Cristo possuía um corpo humano, mas não uma mente humana ou um espírito humano. Para ele, o espírito e a mente de Cristo provinham da natureza divina do Filho de Deus.

1.2 Nestorianismo. Nestório, que se tornou bispo de Constantinopla em 428 d.C., ensinava, segundo os seus acusadores, a existência de duas pessoas separadas em Cristo, uma humana e uma divina.

1.3. Eutiquismo (monofisismo). Êutico (378-454 d.C.), um velho monge de Constantinopla, apregoava a idéia de que Cristo possuía uma só natureza. Segundo ele, a natureza humana de Cristo foi tomada e absorvida pela natureza divina, de modo que ambas as naturezas foram mudadas, resultando em uma terceira natureza.

A igreja responde a essas e outras controvérsias sobre a pessoa de Cristo em Calcedônia, em um concílio eclesiástico que ficou conhecido como Concílio de Calcedônia. Ali, em 451 d.C., os líderes eclesiásticos combateram as heresias supracitadas com uma afirmação cristológica que ficou conhecida como Definição de Calcedônia. “A definição de Calcedônia é considerada o padrão da ortodoxia do ensino bíblico a respeito da pessoa de Cristo desde aquela época por todos os grandes ramos do Cristianismo: o catolicismo, o protestantismo e a ortodoxia oriental”.

Registramos aqui a Definição de Calcedônia, a fim de enriquecer e facilitar a compreensão da lição de hoje.

Fiéis aos santos pais, todos nós ensinamos unanimemente que o nosso Senhor Jesus Cristo é um só mesmo Filho, igualmente perfeito na Divindade e igualmente perfeito na humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, que consiste de alma e corpo racionais, consubstancial com o Pai na divindade e igualmente consubstancial conosco na humanidade, semelhante a nós em todas as coisas, à exceção do pecado, gerado pelo Pai antes de todos os séculos no tocante à sua divindade e assim também nesses últimos dias por nós e por nossa salvação, foi gerado pela virgem Maria (Theotokos), no que diz respeito à sua humanidade; um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, revelado em duas naturezas sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação; a diferença de natureza não pode ser eliminada de formal alguma pela união, mas as propriedades de cada natureza são preservadas e reunidas em uma só pessoa (prosopon) e uma só hipostasis, não separada ou dividida em duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho, Unigênito, Verbo divino, o Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas do passado e o próprio Jesus Cristo nos ensinaram a seu respeito e o credo dos nossos pais nos transmitiu.

2. A Encarnação do Verbo de Deus.

Que o Filho de Deus assumiu a forma humana é uma realidade que permeia toda a Bíblia Sagrada. Foi este o meio que Deus, na sua infinita sabedoria, proveu para reconciliar consigo o homem caído (2 Co 5.19). Diz-nos as Escrituras que o Verbo se fez carne (Jo 1.14), tendo sido gerado pelo Espírito Santo no ventre de uma virgem (Mt 1. 20, 22), após ter-se esvaziado de sua glória (Fl 2.7).

2.1 Jesus, o Verbo de Deus. O apóstolo João, no prólogo de seu evangelho, usa o termo verbo (gr logos) para referir-se a Cristo, ao dizer: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (1.1). O apóstolo reveste o termo de um significado todo especial, muito diferente do significado comum da época, para descrever a procedência divina de Cristo.

A palavra grega logos origina-se de lego (eu falo), e pode significar, basicamente, palavra, explicação, princípio ou razão. Todavia, o uso do termo foi abundantemente empregado por teólogos e filósofos, tanto judeus como gregos, com os mais variados significados.

Entre os gregos, Logos era a lei racional que governa o universo (Heráclito); o princípio da inteligência no universo (Anaxágoras); o princípio de toda racionalidade no universo (os estóicos); Platão o chamava de nous (mente).

Entre os judeus, Logos, tradução da palavra hebraica dãbhãr, cuja raiz pode significar aquilo que está por trás, é a auto-revelação de Deus através de Moisés e dos profetas, podendo designar tanto visões isoladas e oráculos como o conteúdo total da revelação inteira, especialmente o Pentateuco. A Palavra possui um poder semelhante ao de Deus, o qual a profere (Is 55.11) e efetua a sua vontade sem qualquer resistência.

Filo, filósofo judeu, influenciado tanto pelo AT como pelo pensamento helênico, ampliou o sentido de Logos, e lhe deu um lugar central em seu esquema teológico. Filo entendeu Logos como a imagem de Deus, que era distinta de Deus e um intermediário entre Deus e o mundo.

Para João, o Logos era Deus. Enquanto os gregos consideravam o Logos um princípio racional e impessoal, João lhe atribui a qualidade de um ser pessoal, ao atribuir-lhe pronomes pessoais (ele, v 2; nele, v 4). Para os gregos, soaria um absurdo. Ainda, segundo João, indo na contracorrente do pensamento grego, o Logos se fez carne (1.14). Para os gregos, a carne era maligna (gnosticismo), ou quase maligna (platonismo). Então um Logos feito carne era loucura para os gregos (1Co 1.23,24).

Alguns têm entendido que a expressão inicial do Evangelho de João tem ligação direta com o termo dãbhãr, do AT, ou com os ensinos rabínicos concernentes à Torah, a pesar de que o conceito que os judeus tinham de dãbhãr não era o de um ser pessoal, diferenciado do Deus supremo. João, todavia, descreve o Logos como uma existência distinta e pessoal de um ser real específico.O que João nos ensina no prólogo de seu evangelho é que a Palavra possui uma unidade semelhante com Deus e uma semelhante distinção entre si mesma e Deus. De acordo com João, tanto a atividade criativa como a atividade sustentadora do universo e a atividade reveladora para com os homens se atribuem ao Logos, entendimento que só vai encontrar um paralelo nos ensinos filônicos.

É importante frisar que nesse capítulo magno de seu evangelho, o apóstolo João faz coro com muitas outras passagens que atestam a divindade de Cristo (Jo 8.58; 10.30; Fl 2. 5-7; Mt 1.23, etc.).

2.2 O esvaziamento de Cristo. O apóstolo Paulo, na carta aos filipenses, diz que Cristo, “sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas a si mesmo se esvaziou, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (2.6,7). Muitos fazem confusão sobre essa passagem, dizendo que Cristo abriu mão de sua divindade. Isso é inconcebível, pois o Verbo é essencialmente divino e nunca poderia deixar de sê-lo. Imagine o meu leitor adotando uma criança e registrando-a como seu filho. A partir de então, essa criança irá apresentar-se e viver como seu filho, mas essencialmente não pode deixar de ser filho de seu pai biológico. Ela poderá ser privada de todos os privilégios, poderes e direitos que eventualmente poderia ter, caso tivesse vivido com seus verdadeiros pais, mas a essência não muda: as características de seus verdadeiros pais estão ali, dentro dela. Assim, Jesus, pela sua própria natureza, era, é e sempre Deus. O esvaziamento significa que Ele, voluntariamente, abriu mão de sua glória (Jo 17.4), posição (Jo 5.30), riqueza (2Co 8.9), direito (Lc 22.27), uso de prerrogativas divinas (Jo 5.19; 8.28) e em tudo se fez semelhante a nós, à exceção do pecado.

No esvaziamento, Jesus tornou-se ser humano completo. A sua humanidade está indubitavelmente demonstrada 1) na sua ascendência humana (Gl 4.4; Mt1.18); 2) na sua natureza humana completa, incluindo corpo, alma e espírito (Mt 26.12,38; Lc 23.46); 3) nas suas necessidades e sentimentos humanos – ele sentiu fome, sede, tristeza profunda, dor e cansaço (Jo 4.6; 11.35; 19.28; Mt 8.24; 26.38; 21.18; Lc 22.44); 4) nas limitações de seus conhecimentos (Mc 13.32); 5); na sua morte – Ele era tão humano que morreu (Mc 15.37).

2.3  A concepção virginal do Filho de Deus. Ao tratarmos da humanidade de Jesus, não podemos deixar de considerar a maneira miraculosa de sua concepção, o que se convencionou chamar de nascimento virginal.

A Bíblia afirma claramente que Jesus foi concebido no ventre da virgem Maria por obra miraculosa do Espírito Santo. Assim registrou Mateus no capitulo primeiro de seu evangelho: “Foi assim o nascimento de Jesus: Estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se ajuntarem, achou-se ter concebido do Espírito Santo” (vv 24,25). Em seguida o anjo do Senhor disse a José, que estava comprometido com Maria: “ José, filho de Davi, não temas receber Maria como tua esposa, pois o que nela foi gerado procede do Espírito Santo” (v 20). E Mateus continua: “Ao acordar, José fez o que o anjo do Senhor lhe tinha ordenado e recebeu Maria como sua esposa. Mas não a conheceu até que deu à luz seu filho, o primogênito, e pôs-lhe o nome de Jesus” (vv 24,25).

Muito provavelmente pelo fato de Maria ter concebido Jesus ainda virgem, e assim ter permanecido até ao dia do nascimento do menino, é que se denominou chamar nascimento virginal a circunstância miraculosa em que o Filho de Deus surgiu para o mundo. Todavia, apenas nesse caso, a gestação de Maria se diferencia do comum das gestações. Todo o restante do processo gestatório aconteceu normalmente. Maria carregou o Filho de Deus no ventre durante nove meses, precisou de cuidados especiais adequados a uma mulher grávida, sentiu os sintomas próprios de uma gravidez e, finalmente, deu à luz o Salvador do mundo, sentindo, pela primeira vez, as dores do parto.

Há muitas objeções à doutrina da concepção virginal. Muitos críticos não conseguem achar significação nesse fato bíblico. Por que razão Deus enviaria Jesus dessa maneira insólita?

Do que podemos depreender das Escrituras, Deus não faz nada sem propósito. A concepção virginal de Cristo não foi um mero fato, mas tem implicações teológicas profundas. Primeiro, foi o cumprimento de uma profecia (Is 7.14); segundo, foi o meio que Deus, na sua infinita sabedoria, proveu para a) mostrar que a salvação só pode vir do Senhor, sem nenhuma intervenção humana; b) tornar possível a união da plena divindade com a plena humanidade em uma só pessoa; c) tornar possível a verdadeira humanidade de Cristo sem o pecado original.

Gostaríamos de esgotar o assunto neste espaço, mas devido a amplidão do tema e a exiguidade do tempo, daremos sequência em outra oportunidade.