domingo, 10 de abril de 2011

Mera Questão Didática


Em estudo de teologia, assim como em outras ramos do saber, há, às vezes, a necessidade de se dividir um objeto de estudo em fatores para se facilitar o aprendizado. Nas ciências humanas, por exemplo, reconhece-se que o homem é biopsicossocial, isto é, ele se compõe das dimensões social, física e psíquica; e há também quem já reconheça neste meio a nossa dimensão espiritual.  Na teologia, compreende-se o ser humano como corpo e alma/espírito. Não que os teólogos neguem outras concepções de homem, estamos apenas dizendo que na antropologia bíblica, matéria que estuda a totalidade do homem, o indivíduo é assim concebido. 

A decomposição dos elementos, seja no estudo do homem ou de qualquer outro assunto, possibilita a clarificação do entendimento. Todavia o risco é perdermos de vista que as dimensões apreendidas no ser humano se complementam,e, portanto, a análise individual dessas dimensões se dá por mera questão didática. Assim sendo, no real, quando sorrimos ou choramos, adoramos, sentimos dores físicas, etc., não imaginamos que uma coisa é ação da alma, outra coisa, ação do espírito e ainda outra é ação do corpo. Toda essa gama de sentimentos é ação do indivíduo completo, sem fragmentação. Ou então, se imaginarmos que o médico cuida do físico do paciente, o psicólogo cuida do psicossocial e o pastor cuida do espiritual, fica a pergunta: quem cuida da totalidade da pessoa ?

Outra grande confusão acontece quando se ensina sobre as duas naturezas de Cristo. A Bíblia mostra que Ele tinha uma natureza divina e outra humana. Na sala de aula, separamos didaticamente as duas naturezas, o Verbo divino e o Filho do Homem. Seria impossível compreender o mistério da encarnação de Deus sem abordar as duas naturezas separadamente. Entretanto o resultado é que muitas vezes encontramos estudantes da Bíblia se confundindo entre o método didático e o conteúdo do ensino, ao classificarem as ações de Cristo em duas categorias: as que ele realizou como homem e as que Ele realizou como Deus. Exemplo: Como homem, Jesus cansou e sentiu fome; como Deus, ele multiplicou os pães e alimentou uma multidão. Isso é muito complicado, pois dá a entender que havia duas pessoas agindo dentro de um corpo, o que não está de forma nenhuma em consonância com a doutrina bíblica. À parte da didática na sala de aula, quem cansou, chorou, curou enfermo, ressuscitou mortos e perdoou pecados não foi esta ou aquela natureza de Cristo, foi a pessoa de Jesus, o homem de Nazaré, o qual, segundo Lucas 4.18, foi ungido pelo Espírito para fazer coisas extraordinárias. Um aluno já perguntou se o Mestre perdoou os pecados do paralítico, no capítulo 5 de Lucas, como Deus ou como homem; ao que o professor respondeus: "Ele perdoou como Jesus".

Estudar a Bíblia sistematicamente exige alguns cuidados, principalmente na hora de transportar o aprendizado para a vida prática. Alguém me questionou se os dons espirituais concedidos por Deus a uma pessoa podem ser tirados, caso a mesma não vele por eles. As pessoas normalmente têm essa dúvida, porque a classificação dos dons, feita por Paulo no capítulo 12 de 1Co passa a impressão de que os dons são pequenas parcelas de virtudes tiradas do poder do Espírito Santo e colocadas dentro do fiel, ou seja, há uma tendência para se coisificar os dons. Todavia não podemos perder de vista que a classificação foi feita por Paulo por mera questão didática. Do contrário, o interprete pode entender que os dons são alguma coisa pronta – pacotes prontos - que vêm do céu e é depositado dentro do crente, capacitando-o a alguma tarefa de ordem espiritual. Sendo assim, ao sair da presença do Senhor, a pessoa será despojada dos presentes que recebeu.

Eu, porém, prefiro entender a operação dos dons do Espírito com o sentido de relacionamento. A Bíblia diz que o Espírito Santo habita em nós e, dentro dessa relação, passamos a ser instrumentos do Espírito, o qual instrumentaliza cada um de forma específica, estes para curar, aqueles para profetizar e ainda outros fazer maravilhas, etc. Posto de outra forma, o que a Bíblia chama de dons espirituais são ações específicas do Espírito por intermédio dos salvos. Essas ações acontecem na vida da pessoa na medida em que ela se relaciona com Deus. Logo, se o relacionamento for cortado pelo pecado, é razoável que as operações sejam interrompidas.