quinta-feira, 9 de junho de 2011

VIVER DÓI

artigos | artigo cientifico
"Cara, nada garante!" foi a mensagem que passou para os telespectadores do Roda Viva o antropólogo Roberto da Matta quando questionado sobre a morte precoce de seu filho por infarto e o sofrimento da esposa acometida pelo mal de Alzheimer. Matta, um dos maiores intelectuais brasileiros da atualidade, arrumou-se na cadeira giratória do estúdio e argumentou que mais cedo ou mais tarde a vida acaba por desfazer a ilusão de que podemos ter o controle das coisas em nossas mãos.

Passei toda a semana pensando nas palavras do antropólogo. Imaginei que a batalha da maioria  das pessoas consiste na tentativa de manter as coisas sob  absoluto controle. Para isso,  confeccionam os mais variados recursos: dinheiro, posição social, influência, cartilhas de auto-ajuda e até a fé religiosa. Queremos que a nossa família se configure de acordo com o modelo que previamente idealizamos, com cônjuges sempre felizes, num relacionamento indissolúvel, e filhos que se tornem os adultos que esperamos - de preferência que escolham a mesma religião e profissão que escolhemos , casem-se, tenham filhos, fiquem por perto e sejam felizes para sempre. Queremos uma vida sempre saudável, com total ausência de doença, e para isso nos valemos dos extraordinários recursos que a ciência médica põe à nossa disposição para silenciar a dor. Queremos a prosperidade financeira a qualquer custo, para isso nos doamos ao trabalho intenso. E assim, formamos um verdadeiro ritual em torno da existência para prever e controlar as suas intempéries. Seguimos um ritual porque no ritual tudo é previsível. E as pessoas querem previsibilidade.

 Mas a vida é mestra em desfazer ilusões, para sorte ou azar nosso. Um dia você se surpreende com tudo funcionando diferente do previsível, e a frustração decorrente traz uma angústia insuportável. Isso porque o modo controlador de ser que caracteriza o homem moderno o acomete de uma baixíssima tolerância à frustração. E somente depois de muito sofrimento, de remar tanto contra a maré, a gente acaba percebendo que não dá conta mesmo, que as condições impostas pela vida, exasperadas pelas exigências da sociedade hodierna,  estão além da capacidade do homem real e termina aceitando que  a vida acontece, independente de tudo e de todos. Não adianta tentar domesticá-la, prendendo-a  numa gaiola, porque ela vai se rebelar mais cedo ou mais tarde, porque ela é selvagem. Como na cancão do Vinícios, a vida tem sempre razão.

O patriarca Jó passou todos os seus dias tentando trazer sua vida sob absoluto controle. Tentava  proteger os bens com guardiões, e os filhos com jejuns e orações prolongados, para que a Divindade os protegesse.  Depois de ver tudo avassalado pela surpresa de uma grande desgraça, Jó chegou à seguinte conclusão: " O que eu temia me veio, e o que receava me aconteceu". Tal como o antropólogo referido no início desse texto, o patriarca  percebeu que não podia controlar tudo o tempo todo e que o escudo da fé às vezes é vazado. Muitas pessoas ainda agem assim: pensam a fé como um escudo hermético contra todas as intempéries que são inerentes à vida. Até suas orações são motivadas pelo medo.

Mas viver dói. Dói pela incerteza do lugar incerto e perigoso onde vivemos. Como diria um poeta do rap, "isso aqui é um campo minado", e a gente não sabe qual pisada será fatal. Mas a gente sabe que precisa pisar neste chão, que é o único que temos, mesmo sabendo que há  incontáveis perigos à espreita. É duro  abrir o jornal todos os dias, ver a TV e ouvir o rádio a cada manhã e ver os grandes distúrbios sociais, a grande violência urbana, com a criminalidade crescente, tudo isso acrescido dos riscos de acidentes, tanto de caráter natural como os de resultado da imperícia e imprudência humanas. E nós, naturalmente, nos encolhemos com medo de enfrentar porque esconder-se atrás de mecanismos de defesa é mais fácil e menos desconfortável. E cada um procura adequar-se à situação e se virar como pode. Os mais abastados utilizam os  dispendiosos recursos que são vendidos como meio de se obter um pouco de segurança: os carros são blindados, os muros das casas são alteados, cercas elétricas e censores instalados, cães ferozes vigiam. Os menos favorecidos apelam para Deus, para os espíritos, os santos e tudo mais que a indústria religiosa dispõe.  Neste clima de insegurança e medo, o terreno se torna fértil para a proliferação das mais diversas ofertas de proteção – seguradora, escolta armada, segurança pessoal e eletrônica, correntes de oração,corpo fechado, etc. Tem até a oferta de proteção de um anjo para o devoto pobre. Todavia, a julgar pelo caos social e emocional em que  a população se encontra, toda a produção de recursos em matéria de segurança se  tem mostrado ineficaz para trazer tranquilidade às pessoas, pelo contrário, tem clarificado mais ainda o clima de medo e desespero.

É o medo que nos leva a querer trazer tudo sob rédeas curtas e ritualizar a vida para que ela fique previsível. Outro dia, assisti o filme "O Buraco", que conta a história de três adolescentes que encontraram no porão de sua nova morada  um buraco mágico, o qual tinha o poder de potencializar e materializar seus medos. A partir do achado, a maneira como a vida deles passou a acontecer era uma reprodução de seus temores. Pois é, o que vemos acontecer na sociedade em geral é reprodução de temores que acometem os indivíduos que a compõem, o medo que potencializa o espectro do mal, e o mal potencializado gera ainda mais medo, num ciclo vicioso. Não que seja errado querer proteger, prever e controlar, não que a gente vá se atirar num abismo sem fundo e se render irremediavelmente à sorte, estou apenas argumentando que quando essas preocupações ultrapassam o limiar, viram doença. Refiro-me a essa preocupação doentia a fim de dizer que a sociedade está doente pelos seus medos.

Por medo, nós:

Construímos muros / e nos fechamos para a experiência.
Destruímos pontes e nos tornamos inacessíveis.
Eletrificamos as cercas ao redor de nós e ficamos intocáveis.
Blindamos a passagem para o nosso interior / e ficamos "inafetáveis".

E assim fechamos as portas para a grandeza do potencial que há em nós, num processo de adoecimento que impede até mesmo Deus de agir em nosso favor. Não podemos esquecer as palavras do Mestre: "Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo" (Ap 3.20). Notemos que Jesus disse que bate, ele não disse que primeiro se identifica. A minha hermenêutica parece pertinente, ele pode bater e não dizer nada, exigindo do outro lado coragem para abrir e perceber, surpreso, que é o Mestre.  Um professor sugeria que deixássemos a porta sempre entreaberta, que nem a escancarássemos nem a trancássemos. Ele sabia que o medo doentio cerra a entrada da vida, diferente do cuidado saudável, que não escancara, mas deixa a porta entreaberta. Quem fecha totalmente a porta por medo do mal, tranca-a também para a entrada do bem, porque a vida é assim, um estado que varia de hora em hora destinado a gerar crescimento.

Abrir a porta é interagir com a vida, é estar aberto para múltiplas possibilidades, e é aqui que reside a grandeza da existência,  nessa interação com a vida em sua plenitude. Como contraproposta ao conforto do isolamento, a vida oferece o crescimento da exposição, da incerteza dos que já perceberam que nada garante absolutamente.  Foi isso que Jó compreendeu quando, depois da experiência amarga que passou, disse a Deus: “Antes eu ouvia falar de ti, mas agora te veem os meus olhos”. Foi isso que Matta aprendeu com sua experiência amarga. O crescimento é mais importante que o conforto.

Finalizando, a vida humana reside neste tripé: relacionamento, comunicação e movimento. Se faltar uma das pernas, o crescimento é bloqueado e a vida adoece. Então não deixe que o medo doentio impeça seu crescimento, movimente-se, saia da caverna e reconstrua a ponte da acessibilidade, derrube os muros e se exponha à existência, tire a blindagem e permita-se ser afetado, remova a cerca eletrificada e deixe-se ser tocado, abra a porta da casa e BEM VINDO à exuberância da vida. Solte o grito preso na garganta e diga: Estou vivo.